“Deveria pendurar a cabeça e cantar louvores, cândido, e exaltar: Alleluia!” I Poesia de José Emílio-Nelson

VISÃO DO ANJO
Anjo Glorioso licencioso, anjo, em véu cuspido,
Degolado em todo o seu torso nodoso e cintilante.
(Deixar-se-á dentro do desarranjo, expirado.
Os dedos esfacelados dão-lhe um sino.)
Anjo de osso, ávido, de carbón, caído sobre si,
De excremento enferruja a harpa.
(Descarnado das penas alisadas.
Santo de auréola trabalhada à peça.)
Conduzido pelo êxtase num rosário.
Que a palidez da nuvem descende dos céus.
(Apressemo-nos, a brancura das suas lágrimas roçam as noviças
E os do coro, crianças, não faltam os castrados com a luz que não lhe nega as
feições, a vela apagada, a do velório, enche-o todo.)
(Anjo beatificado pela expectoração duma cruz usada à toa.)
Reluz a oração que sussurrou aquando da convulçãozinha.(Uma gotinha «de alma em alma», abençoada. O anjo aos soluços devaneia.)
E morre de morrer de rosas tersas.
Anjo, anjo, anjo (de inerte, colegial, anjo que cabe num trapo ou sudário
engomado).
*
VOZ ROUCA [Guyotat]
[Rien n’est beau que le laid.
A.Polin]
Escrevo no presbitério, cogula de couro,
Sentado na cadeira furada.
(Preparem os panejamentos para os perjuros.)
Sentado, a esgaçar versos
À sorrelfa, esplendo, caem.
A turba cospe-me, vem outro
E os decora,
Aprende de cor a ladainha
Que se amontoa
Retocada pelas fístulas.
(Pigalle empresta músculos enfermos de soldado a Voltaire.
A mim, palavra jurada,
Querem-me sem máculas.)
Então limpo aos reposteiros,
Às rendas dos decotes e da bandeira.
São éditos apregoados em ruídos de coretos.
E ao voltar de página
Molham o dedo na pálida semente da baioneta de porcelana com florinhas
estampadas, bem guardada na braguilha.
Deveria pendurar a cabeça e cantar louvores, cândido, e exaltar: Alleluia!
(Boca de lado, em rosca, movia-se que consola a abadia.)
Na fragrância que ornou e floriu,
Escura, bem abaixo do
Olho (tão da cor de oliva, se não sangrarem as hemorróides).
Perguntam, aonde recolher aí o óleo santo?
A obrar o odor suavíssimo que da santidade emana.
Tentam ler no que os encima, mal digerido,
E encolhemos pés no sapato,
O que os consome a raspar as unhas.
(A despedaçá-las, o censor
Tresanda, ó varão encapuçado!)
Vê sem ver
Que o verso jorra
Alternando urinas e vagalhões de
Cruzes, báculos, que emergem secos, mornos tons lilases, e
Do buraco lúgubre, soprou a prevaricação.
Prevaricadores
Oferecem as vergastas odorosas.
(E outros fazem abanicos das condecorações.)
[Paramenta. Báculo. Estola.] Zarpa a soldadesca.
(Às merdas! À merda!)
Saltam pela corda grossa do nariz, ossinhos de Relicário e
Promontórios pedrosos que derramo na cadeira furada.
Lastimavelmente sedentos vestem de alto a baixo a
Pátria, as tavolette do condenado.
Suspensos pelos pés espreitam ardentemente.
(Tua formosura
E usura,
São Sebastião
De poentes melados,
Insuflou o que nele resplendeu.)
Descobrem-nos e guindam-me
Do prepúcio até ao escopro.
(É só a glande urrando!)
O que aí se diz? (Eis-me atado à jaculatória que perscrutam os censórios.)
(Não cessa aquela mirra no baloiço dos guizos incensários!)
À pluma querem-na encerada (Index expurgatorius).
O que aí se diz o Último o diz.
♦
José Emílio-Nelson poeta crítico e editor, nasceu em Espinho, 1948.
Bibliografia: