7 poemas do livro “Pólvora” de Prisca Agustoni
DO OUTRO LADO DAS CHAMAS
Do outro lado das chamas
mergulham os caçadores
num espelho de lama
:é o ano mais vermelho:
farejam os animais
entre os arbustos e a relva
na selva escura da noite
os rastros do cervo
e de sua arborescência
*
A PRIMEIRA MULHER
A primeira mulher repousa
dentro do seu sono de larva
macera formas vegetais
e minerais, enquanto aguarda
(entre a quadratura
de saturno
e o arcaico da terra)
que seu corpo ganhe escamas
e vento,
rota possível
– latido
mínimo de infinito
um coração oculto
e breve,
motor desafiando
a duração tátil do voo
na penugem da asa;
no sono a mulher sonha
seu duplo
singular
– a insurgência da loba
na latência da crisálida
*
ERA UM VEZ
Era uma vez uma mulher
que escrevia um caderno
como alguém que cultiva
um pomar, com o método
e o cálculo exato da crueldade
na poda, ao rasgar as sílabas
que sobram
galhos de um dizer
fora da hora
fazendo desse exercício
que alterna fúria e fleuma
seu antídoto contra a morte
ao devorar
– sendo devorada-
os frutos da palavra
*
MINHA LÍNGUA
minha língua é uma brasa acesa
por onde passam
distilled spirits
onde se inscreveram
gerações de desejos
e disparos
uma linhagem feminina
babélica e faminta
*
STERNA PARADISEAE
ser como a sterna paradisaea:
seguir a linha celeste,
uma rota magnética
ao redor da terra
do círculo boreal
à Antártida,
do leste ao oeste,
carregar uma casa
sempre aberta
nas asas,
ter a luz definitiva
de um verão que não cessa
como destino
e sanha
expressar no gesto
mecânico do voo
o mistério
e o motor
infinito da espécie
e ainda assim
ser apenas uma
entre milhões de aves
que fazem da revoada
morada e errância
*
O CADERNO
tudo o que tenho está nesse caderno:
a imagem de minha mãe
rasgada
braço amputado,
coração explodindo
o fogo no olho
a faca no punho
um corte à altura do fêmur
um corpo pela metade
uma mãe pela metade
a filiação que jamais foi
inteira
luto com palavras
para que a traição
me devolva este país
nenhum
*
NÃO MATARÁS
I.
não matarás:
eis o mandamento
no entanto
a cada manhã
o alpendre
é uma coleção de cadáveres:
besouros, formigas,
libélulas,
pedaços de patas
longe das asas;
tu te perguntas
ao varrer os espólios
dessa silenciosa batalha
quem é o inimigo
que larga suas vítimas
pela estrada
tua sacada te lembra
uma parede
cravejada de balas:
artrópodes e pétalas,
um fiel daguerreótipo
da devastação;
não varrerás
esse frágil ecossistema
da matança
serás a arqueóloga
que reconstrói
em cada ruína
sua exígua eternidade
II.
não conseguir se desfazer
das partes mortas
coletar os restos
com minúcia
e crueldade
para depositá-los
no fundo do frasco
como criaturas
no laboratório:
há algo de terrível
no estudo
e no seu método
III.
se toda perspectiva é parcial,
quem sobrevive a quem
quem é o bicho e quem
o anti-bicho
quem olha para quem
sem espanto
nesse gesto frenético
de varrer o quintal?
IV.
montar e remontar
a língua como as patas
de uma aranha mutilada
minha boca ficou anos
com as sílabas trocadas
♦
Prisca Agustoni nasceu e cresceu na Suíça. Desde 2002 vive no Brasil, onde trabalha como tradutora e como docente de literatura italiana e comparada na Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Colabora com vários jornais e revistas literárias na Itália, na Suíça e no Brasil, e integra a curadoria do Festival Literário Chiasso Letteraria, na Suíça. Escreve poesia e prosa em italiano, francês e português, com incursões no espanhol, e sua obra foi traduzida para vários idiomas. Entre suas obras mais recentes estão O mundo mutilado (Ed. Quelônio, Brasil, 2020, finalista Prêmio Jabuti); Lingua sommersa (Ed. isola, Itália, 2021); Entre o que brilha e o que arde (Ed.Urutau, Brasil, 2022); verso la ruggine (Ed. interlinea, Itália, 2022, prêmio Suíço de Literatura; Finalista Prêmio Fortini); O gosto amargo dos metais (ed. 7 Letras, Brasil; ed. Exclamação, Portugal; Prêmio Cidade de Belo Horizonte; Prêmio Oceanos de Poesia 2023); Arqueologias (Ed. Peirópolis, Brasil, 2024). Os poemas aqui publicados pertencem ao livro Pólvora (Ed. Macondo, Brasil, 2022).