10 poemas de Luís Filipe Pereira
[no litoral das lendas
o poema indigitado
para talhar um centro
para introduzir-se na candeia de barro
de uma polícroma voz
que adolesce dois pisos de silêncio em seara transparente
afago de crisálida resumida a dois dedos
o poema eleva a crina careada do concreto
filtrado no tripé da língua
que morre com os muros
lavra antes o que do sorriso careteia
diante do vagar de um arado
recuo operativo pelo lado interno
de um meteoro de trigo
o poema indigita
um hausto de sol
bebe-o compassivo do peito da planície
árida voraz de um verso
[in: No Lugar da Pouca Farinha, ed. Temas Originais/2016]
*
[vermelhecer
o grito ou um girassol atónito
alguma coisa de vermelho polariza
a jorros a centelha do negro aí
na dor que se apruma de rojo
na penúria dos vergéis
a palavra afluente ou um bulício
assobiado às labaredas dos lábios
ao punho à página aos trópicos
onde dos leitores as ancas
curvadas sobre a paisagem
a entranha das fontes
o poema há-de trazer o silêncio
ou uma imemorial ilha submersa
o fogo no sangue o horizonte
a combustão fria do minério
a pedra da imagem o poente
o refluxo do grito ou de um girassol
na noite reduzido aí
no imo do recuo o eco súbito
das ruínas em fuga na falua da fala
é na velocidade dos cardumes roxos
que vermelhece o alfabeto
o símbolo de alerta do tempo
[in: A Tela do Mundo, DG ed/2008]
*
[transfusão da seiva
eis-me solto de espartilhos de gessos
de couros a gangrenarem-me o peito
a casa onde somente cartilagem contágio
dos dedos já não pungidos pela polpa das conchas
eis-me irrevelado literalmente livre
pelo estudo agrícola englobado
eis-me de novo metamorfose
frida kahlo raízes no meu rarefeito corpo nascidas
suturas de magnólias brancas abertas
ao que nele cicatrizes a prodigar a carne
em folhagens a pique pasto ríspido
a minha carne subtileza parasitada
de inversas crostas cardíacas ceifadas melancias
eis-me ornamentado de anéis sal-gema
apoteose de foices na vegetal aorta
de que brotam ramos clorofila a esmo
eis-me latido vindimado
no vulcão das molduras
[in: A Tela do Mundo, DG ed/2008]
*
[inutilidade das cores primárias
não serve o branco pra pintar
a morte desmaquilhada
o descampado
não serve o preto pra pintar a bátega nos olhos
sem um sítio para o pavor da acrofobia
as cores primárias são a inútil precedência
não servem pra pintar o rastilho a beleza
a pólvora cerca da cinza na boca ó pátria
de cano serrado sobre os ombros encolhidos
não serve o vermelho pra pintar mais que os cabelos
pra refazer a linha descosida do sangue ó século
[inédito/2023]
*
[às palavras aflora um rio
aflora um rio um feixe de remos elevados
tecla a tecla e l z u q v t p pede-me a água
que a leve a algum sentido que lhe conceba
um caudal um redemoinho fruto da vontade
como se o rio rangesse palavras e em via pudessem
devir transparência duplicada e um nas outras
desaguasse e me fosse contundente um tempo
boiando-me mediante e introduzisse a falta
num rumor liso branda inteligência deslizando
das águas simples meandros de inequações
cascos das soberanas ilhas dos amores dos seus
motivos e silvos drenados de um estuário esquecido
aflora-me um rio que me atravessasse com vogais
vogantes de manhãs erguidas da mão de obra
um rio onde espelhasse a pele as suas escamas
e crassos espigões esmoídos na carranca da morte
a minha pele assim desabrido mel motor
do ouriço num verso volvido ao âmbito anil
à senil espera das palavras ainda não nascidas
não teclas ainda como se diante do mar definitivo
fossem as palavras trechos de um rio que o visitasse
[in: Cintilações. Revista de Poesia e Ensaio, ed. Labirinto/setembro 2016)
*
para Nuno Júdice
[um lugar para um poema com indicação de lugar
o poema leva-me ao lugar que só o poema indica.
a um lugar necessário. cedo. o meu olhar sem-abrigo
saúda-o como te saúdo a ti na cinética proporção
em que te desmereço.
porque as verdades da solidão duas próteses da bacia
para baixo. o meu cerro de cartão aquém do muro
decoroso. um cerro a terabytes de gaza.
no lugar comum da circuncisão
do dispositivo biológico da alma.
da secura pedinte. da epiderme do incêndio. das armas
indiciativas de gazes empoladas. desde o alongamento das nucas
posto que analógico o pranto. estiramento do pescoço
para dentro do símbolo cerúleo. para dentro da cova-do-ladrão
onde um ror de costelas fugidas à polícia. à fome.
ao estrabismo do avião caudado de rádio.
o ancestro despejado não do poema não do pão-leve
da linguagem. a contento do longo verso do medo.
décadas idas e gaza pisoteada na jugular repuxada. túneis
alheados que afeiam tudo isto tornado lugar no mundo.
e tu não vens? e tu não vês?
de resto cheira ao teu cheiro o canto do galo no lado médio
da noite. tarde. canto içado pelos teus lábios. não poucas vezes
o poema erra o lugar indicado. é da sua condição distrair-se.
dispersar os malquistos.
gaza é um mortal pontapé nos estômagos. a cada tiro
aos pombos mais dilatados. invariavelmente demasiado.
pese a convergência dos lugares centrados no poema
que dá indicação do lugar comum de quem vê
e do que vê mesmo no uso de um olho de vidro. de bala.
um écran um tablet uma guarita interrompida
pelo som medonho da tinta. a esturrar a tua despedida.
a morte à pressa. a casa desfeita. o cano serrado
do hinário do galo na minha cabeça. tu
uma última conversa ao canto da rua.
também tu vice-versa?
as crianças deslocadas dos sorrisos
nas articulações dos dedos. balouços. abrigos
distraídos da infância.
a tua ausência é um fémur radioactivo. mostro-te
a cadeira-de-rodas da cidade. indigito a cilada.
a carroçaria dos jardins. a demolição das nervuras
das estátuas. mostro-te
uma criança de muletas observando-as.
na quântica cegueira do poema ressoam medalhas de carne.
promoções ao esquecimento. mostro-te
o cais no quarto crescente do mar vermelho.
como é morar no desabrigo durante dezenas de anos?
volto o torso para a novidade das moscas
à volta dos candeeiros. em numerário há-de vir a luz à tona.
pelo teu próprio pé virás contar-me em segredo
o cessar-fogo. as incursões empedradas. as bichas de rabear.
virás mostrar-me o chão de gaza por um canudo.
de sete cabeças a condenação aos lugares.
ainda julguei que trazias contigo o refúgio. o túnel das romãs
a céu aberto. pungido. que o som das bandeiras em apneia
se extinguiria no teu peito. no clima do teu sopro.
até quando o chão sulca covas afeiçoadas às próteses?
mostro-te que a separação não é senão metades metálicas
de osgas nos ouvidos. algodão-em-rama sonâmbulo.
nada sei do lugar de ti. indica-me o poema
que continuas a pedir-me platinas de tréguas
nos meus joelhos. volto o rosto e vejo navios
de ardilosas colheitas tolhidas nas duplas roseiras das águas.
[in: Revista Poesia Plural. Homenagem a Nuno Júdice. Primavera-Verão/2024]
*
[uma espécie de tempo
escreve.
não tem a secretária voltada para o cemitério
como brecht, mas partilha de igual vertigem,
da símil insânia que compendia os versos amotinados
a esmo das lâmpadas. sela a estrofe provisória
(o mais das vezes peso de estar vivo na fronte
das entranhas, pernoite na clara noite das palavras)
a retina contundente sobre o tempo curto
de facas afiadas no desterro das mãos.
[…]
escreve.
a cada silêncio uma brecha, fissura na espera
em guerra no motivo do rosto.
contrai o tempo. a ilusão que o confirma.
palavra nenhuma infirma a delimitação
do poema pelos subúrbios da morte.
[…]
latem demenciais os cães da lucidez, divergem
da vibração nédia de qualquer recordação.
escreve.
a mão ousa desloca-se com mineral lentidão.
mas o poema reflui à garganta. flui em rutilante
deposição. a mão
tocha de veias a pesar na carne. uma prancha brevíssima.
bastarda. defenestrada a pergunta, reduzida a ossículos
e tendões. nódulo de pasmo remanescente aonde vem
o morticínio das pedras.
escreve.
as palavras em laje e em urze.
escreve.
nada sabe da rasura do tempo.
[in, Consoante as Estevas, 2ª ed., Coisas de Ler/2018]
*
[esquecimento
o gato assedia nas cortinas a fluência de veludo.
um rastilho mina a casa. a mulher é um rudimento
de mãos ocupadas com antecipações de alvor cosido
nas sobras dos tecidos.
penélope arrasta o esquecimento.
a reclusão da mulher. aí onde
uma ameaça omitida pela litania das agulhas.
o espelho pestaneja decotes recurvos. trombos amargos.
luvas antigas. retalhos. handy craft. dedais. décadas
procrastinadas. o gato pinta as unhas na cor do teu vestido.
arranha-te mansamente com palavras descendentes.
resquício febril de vidraças.
a mulher olha para a porta, mas a porta trancada.
o telefone bloqueado. esqueceu-se do pin.
que desejo é o desejo? incidente de refrega
a escolta de pentágonos à volta dela.
a nenhum desejo uma adesão completa.
o desejo, flecha parasita sem causa justa.
as paredes, o rímel, a saliva do verniz em acetona.
que desejo é o desejo? ave-maria dos estremeções,
cheio de graças o perfil bordeline. doença major,
o sangue no amor rotinado. delirante.
[inédito/ 2023]
*
[a cidade à quarta-feira/I
sobra do corredor a luz que punge a imagem
o que observo do vidro: a cidade contemplativa:
condição de possibilidade para haurir do vento a raiz,
cantochão da exterioridade numa indiscreta atenção
o céu é um risco de cobalto sobre odres de gerânios
ruindo de colunatas imperfeitas, de campânulas farpeadas,
magoadas contra a respiração cismática, como se velado
por máscaras de gás o hangar saturnino da evidência
sob o risco franzido um conjunto de azulejos
monocromáticos
lembram ossos rasgados d´árvores do outono herdadas
aonde uma trama de pássaros vai diferir o amor,
o que poderia ser amor se da nuca exumado
de um fontanário o tempo diminuendo
lava de ícaro o coração indigente, sacode-lhe a massa de sal
das pálpebras, declinando assim o desastre em figura d´aranha
presa de garra no interior cruzado dos bolsos
no jardim que não existe passam espectros assalariados,
suores do vinho quente, estreitas bocas do pão exaltado
entredentes. entre a placidez de março e dos retratos
enleia-se o ventre de perséfone a escravos frutos
das vitrinas pendidos
[in: Elogio da Espera, Poética Grupo Editorial/ 2022]
*
[caderno da espera XII
espera-nos o silêncio
constante indigitação do poema
saberemos retirá-lo em revelação?
debalde os centauros da morte
o clarão em escombros
os morteiros
e o vazio sucedendo-lhes
resta ainda
uma avena de ternura?
ainda que oásis inexistente
em ablução na casa
será ímpeto suficiente
para articular a divisão
portuária?
espera-nos do silêncio alongada
uma mão de esmola sem amos
no impulso dos dedos
[in: Elogio da Espera, Poética Grupo Editorial/ 2022]
♦
Luís Filipe Pereira, escritor, ensaísta, poeta. investigador em filosofia e em literatura. quatro livros de poesia publicados: A tela do mundo, No lugar da pouca farinha, Consoante as estevas, Elogio da espera. no prelo: novo livro de poesia, mês de junho. vários ensaios publicados, colaborações em antologias, recensões, revistas portuguesas e estrangeiras. pre & posfácios. também mestre em teoria da literatura & etc.