– O que nos faz humanos?
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É a pergunta que me fiz numa sala de espera de hospital quando me deparei com a entrada de um ‘homem’ numa cadeira de rodas. Misturados ao barulho de metal dos rolamentos desgastados da cadeira seus berros despertaram a calmaria da sala. Nem pareciam saídos da boca de um enfermo.
Pacientes à espera fingiam distância da cena, embora avistassem um fio de saliva a escorrer pela camisa do homem, mãos abarcando o vazio, a luz esgarçada do olhar sem alvo. E os berros…
Parecia estar ali para incitar o desprezo.
E eu, como se pelo avesso dos espelhos pudesse avistar pássaros negros atordoados num Céu sem remissão. Paisagens registradas no inconsciente tal como antigas gravuras japonesas de samurais fazendo harakiri, lagos azuis onde boiam cabeças levadas pela Grande Onda.
Naquele sonho, algo saía do ventre do “homem”. Por uma espécie de sonda pequenos vermes se despejavam feito gotas amarelas.
E ele continuava a grunhir cada vez mais alto.
Os pés, pendentes dos estribos, lembravam lebres içadas ao teto em mercados flamengos. (As lebres mortas permanecem assim até serem retiradas quando a podridão se anuncia através dos pelos que vão se desprendendo aos poucos. É nessa fase de degradação que a carne das caças deve ser tratada com especiarias, afogada no vinho, transformadas em iguarias.)
Não sei o porquê de haver “vivenciado” aquele sonho num mês a findar com seu jogo de folhas mortas. Nem ter guardado tão nítida a imagem de um homem disforme, ventre aberto, pequenos bichos despontando por uma fresta purulenta.
Temendo que a cena pudesse tornar-se um pesadelo recorrente, pensei:
– O trabalho dos dias findará por colocá-lo num ‘lixo’ invisível.
No terraço, debruçado no parapeito, olho o Mar.
Sinto o arrepio trazido pelo Vento que chega dos lados do desterro. Com ele, o pressentimento daquele sopro aterrissando como uma sorte de mensagem entre a vigília e o sono.
E cerro a janela da Madrugada que se estende como um tapete sobre o céu de Lisboa.
Quatro horas de diferença entre dois pontos no mapa cravados com alfinetes azuis. Do outro lado do Mar a vida parece ter mais pressa. O fuso horário é não apenas referência de um tempo, mas um descompasso entre vozes em ruína. E aprecio ser um dos primeiros a saber das notícias horas antes dos que ainda jazem na Noite.
Retiro do bolso o celular como se estivesse abrindo a Caixa de Pandora, a que pode conter todos os presságios. Preciso constatar se no Universo ainda há algo que seja novo. Quem sabe, o anúncio de um acontecimento prestes a ser deflagrado.
Ou uma explosão de romãs maduras.
Volto ao quarto.
Na cadeira, frente ao computador instalado na mesinha de trabalho, abro o face. Começo por apagar matérias e fotos de “amigos” da lista. Um deles, costumeiro em contar casos pessoais para fazer reflexões cuja presunção aborrece. Espécie de cronista das próprias “aventuras”: encontros com famosos, resenhas ‘literárias’, viagens ao Exterior. Até mesmo referências veladas a mulheres com as quais sugeria algum conluio amoroso. Outro, um nostálgico a divulgar flashs de sua cidade morta. Ou um escritor a abusar de adjetivos para preencher linhas de algum jornal.
Noite adentro, busco testar uma das inovações da Inteligência Artificial. Novidade que me sirva de passatempo. Jogo entre textos e figuras. Uma máquina programada para gerar imagens ou situações a partir de uma frase.
Aciono a ‘chave’ levando a um prompt crafting, toque de teclas susceptível de traduzir em figuras o que foi digitado. Solitário noturno, eu seria mais um numa ‘comunidade’ com três milhões de seguidores. ‘Portas’ se abrirão para que penetre num redemoinho de configurações conduzindo-me a um Mundo de Mortos Vivos.
A frase
Concentro-me para descobrir um conjunto de letras que me descubra paisagens e situações inusitadas. Monstros ou lugares oníricos ou cenas de algum espaço desconhecido… Momento de criação, como o de um ‘Deus’ embaralhando o Destino de seus seres perdidos.
Decido-me por um verso de João Cabral de Melo Neto que me martela a cabeça. Impresso num cartaz comemorativo do centenário do Poeta, enviado por uma amiga. Eu o havia colocado debaixo da tampa de vidro de minha mesa de trabalho. E aquela frase acabou por se tornar leitura diária, quase mantra, desde que fiquei sozinho naqueles altos da Cidade. Suas vinte e nove letras podiam, quem sabe, levar-me a um estado alterado de consciencia. A perfeição de um verso é sempre um alento em horas de Insonia.
Persigo as instruções e
DIGITO:
A pedra dá à frase seu grão mais vivo
Logo se descortina um painel de fundo avermelhado.
Aguardo alguns segundos pela “[resposta]”.
Do verso surgem sequências de imagens, formas desconexas, seres flutuantes, objetos raros.
Áreas de Sombra abrem-se em leque como imagens de um calesdoscópio.
Penso que minha ‘leitura’ irá depender de meu humor naquele início de um outubro tenso, estranho. Algo a ver com as conjunções no Mapa Astral a adivinharem notícias confirmadas por telefonemas de amigos, noticiários de TV, matérias de jornais, naquele
30 de outubro de 2022:
Regência de Escorpião. Marte em Gêmeos suscitando guerras, distúrbios. Lua crescente. Conjunção de Saturno e Plutão. Início da retrogradação do planeta da Guerra a preparar dias turbulentos. Três signos especialmente impactados: Áries, Gêmeos, Escorpião.
E a notícia que acabara de chegar:
[30.10.2022.
Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi eleito novamente presidente do Brasil. De acordo com a apuração realizada pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), o líder petista venceu o segundo turno da disputa, neste domingo (30), ao derrotar o atual chefe do Executivo, Jair Bolsonaro (PL), o primeiro a não conseguir a reeleição.
Folha de São Paulo.]
As imagens
Acionado o computador, a tela devolve-me:
(Uma planície de ‘areia’ acobertada por um nevoeiro, faíscas ferindo o fundo cinza da paisagem. Um personagem indefinível, que se poderia chamar de ‘criatura’, sentado num aglomerado semelhante a um rochedo. Segura um livro dilacerado. A seus pés caem letras, semelhantes a um simulacro de pássaros afugentados pelo tiro de um caçador, do qual se entrevê apenas um pedaço de braço segurando a arma. Ao seu lado, uma silhueta decepada.
Caracteres formam, numa espécie de voo, uma caligrafia estranha. Abaixo dela, a imagem de uma mão de cinco dedos, sendo que os das extremidades são polegares. Na palma, um OLHO aberto como se estivesse a nos resguardar de algum sortilégio.
Procuro em vários sites o que poderia conter aquela mensagem.
Interpreto como um esconjuro para nos livrar do mal. O da Mão de Fátima, a filha do Profeta: Khamsa fi aieinneknek = Cinco dedos nos teus olhos.
Um lampejo amarelo, no canto direito da tela, lembra uma lua no seu quarto minguante. Um halo encobre parte de um “personagem” sendo expulso, vestido com uma indumentária verde, desbotada, manchas vermelhas nas mangas, botinas negras. No ventre inchado circulam serpentes cintilantes. Ao centro, sobre a cabeça da ‘criatura’, o brilho de um punhal de prata.)
Retorno ao terraço.
Olho o Mar.
Mar salgado de sinas e sombras.
Fico mesclando eventos presentes a leituras passadas.
Aquele mesmo MAR havia sido atravessado por um dos homens do Destino.
Um menino que partiu para o outro Lado e se tornara Poeta.
O que se rebatizou naquela Viagem para voltar ele mesmo: um arbusto mais perto da terra. Aquilo que no mundo galego se diz TORGA. Para nós, também tipo de trave que se põe no pescoço dos bichos de carga.
CANGA, da qual nunca mais nos livramos.
[A lembrança a funcionar como antídoto aos fantasmas da Tela.]
Copo na mão, aguardo algum tempo para sorver o vinho que dribla os dias de Desatino. Volta do parafuso para sacar da cabeça os pequenos demônios da Noite. E enquanto imagino conjugações entre imagens, tempo, histórias,
LIGO a TV e vejo
na tela fundirem-se imagens criadas pela Inteligência Artificial.
O personagem do Pesadelo.
O ventre inflado onde se abrigam pequenos vermes escorregadios.
O terno azul escuro, a gravata verde, botinas negras…
E, de repente, dou-me conta:
Nas paisagens do Sono,
a Morte ou o Absurdo às vezes ressurgem
como num quadro vivo.