O Átomo do Simbólico: uma invenção poético-conceitual para o século XXI I Alcimar Alves de Souza Lima
Indo, sou
silêncios assobiam tempos
o eterno nos pisca
a morte mora no furo do futuro

1. Condensação mínima do sentido.
Na história do pensamento, o átomo foi concebido como a unidade mínima da matéria. Mais tarde, a física quântica revelaria que esse átomo, longe de ser indivisível, era um campo de forças — instável e aberto a transformações. Inspirado por esse percurso — e pela pulsão de vida que impulsiona a criação poética —, proponho o átomo do simbólico como a unidade mínima da significação com potencial transformador: o micropoema. Este não é um simples aforismo nem uma frase breve. É uma fissão da linguagem, uma diminuta explosão de sentido, muitas vezes com efeito retardado, que provoca cadeias de interpretação, ressonância estética, deslocamento clínico, irrupção filosófica. Em tempos de hipercomunicação vazia, o micropoema é um estouro de condensação simbólica.
memória não é o passado
é o presente passado a limpo
em mergulho no furo do futuro

2. Ruído de fundo cósmico e ressonâncias humanas
Assim como os astrônomos captam o ruído de fundo do universo — vestígio dos primeiros instantes do cosmos —, também na experiência humana existem ruídos transgeracionais e subjetivos. São intensidades que atravessam famílias, culturas e épocas. Detectá-los exige uma escuta que vá além do evidente: um prisma capaz de registrar oscilações invisíveis, onde a ciência e a poesia se tocam. O micropoema atua como um sensor dessas vibrações. Seu ritmo breve e sua densidade semântica recolhem os ecos dessas energias primordiais e os convertem em linguagem.
3. De Schiller a Freud: estética e razão
Friedrich Schiller ensinou que a experiência estética precede à razão: não há pensamento sem percepção. Sua intuição dialoga com Sigmund Freud, que em Além do princípio do prazer vislumbrou a pulsão de morte como pura intensidade que pode tornar-se criação. Em Freud, a ciência é inseparável da estética: o método especulativo que funda a psicanálise é também uma aventura poética. Essa herança pulsa na proposta do micropoema como átomo da linguagem.
4. Ciência e complexidade
Werner Heisenberg mostrou, com o princípio da incerteza, que a observação altera o objeto observado. Benoît Mandelbrot revelou a geometria fractal que pulsa na natureza. Albert Einstein, com a equivalência entre massa e energia, abriu a porta para conceber a matéria como vibração. O micropoema dialoga com essas intuições: sua brevidade fractal reflete a simultaneidade de onda e partícula, de duração e instante.
5. Micropoema: átomo e centelha simbólica
O micropoema encarna o átomo do simbólico porque funciona como uma unidade geradora — mas não fechada. Está prenhe de ambiguidade, de conotação, de ressonância. Sua forma breve não é sintoma de pobreza, mas de potência. Um único micropoema pode fraturar uma teoria, abrir uma dobra no tempo, iluminar zonas de sombra em uma escuta clínica.
caminho sou se tropeço
é onde outros nunca passaram

Cada micropoema, quando é verdadeiramente tal, pode articular-se com outros e formar uma substância simbólica mais complexa. Daí proponho imaginar uma espécie de tabela periódica do simbólico: se cada micropoema é um átomo, sua combinação gera moléculas, compostos, sistemas, movimentos de significação imprevisíveis.
o tempo não passa / eu sou o compasso

6. Dobra, duração e fusão de intensidades
Seguindo Bergson, o tempo não é uma linha, mas uma duração vivida, com dobras, repetições e sobreposições. Meu conceito de dobras do tempo retoma essa ideia: o presente não acontece em uma sequência vazia, mas como dobra de memórias, percepções, afetos, ausências e presenças simultâneas.
onde a dobra não prossegue
angustias aparecem
A angústia não é aqui um sintoma, mas o sinal de uma interrupção na continuidade da dobra temporal, uma fenda no fluxo simbólico. Nesse sentido, minha proposta se diferencia tanto de Freud quanto de Lacan, ainda que as complemente. Lacan afirma que o inconsciente está estruturado como uma linguagem; eu proponho que o micropoema — como átomo da linguagem — precede inclusive a estruturação.
7. Caos, entropia e criação simbólica
Os micropoemas, ao contrário do ruído caótico das redes, organizam o caos por meio da pulsação conotativa. Isso se articula às ideias de Prigogine, que mostra que, em sistemas abertos, a entropia não apenas destrói, mas também gera novas formas organizativas — as chamadas estruturas dissipativas.
na fratura do sentido / vivas partículas brotam
Assim como a física moderna reconhece que matéria e energia são intercambiáveis (E = mc², segundo Einstein), proponho que, no campo simbólico, existe uma equivalência entre energia poética e intensidade conotativa. O micropoema não tem massa gramatical, mas possui uma altíssima densidade de significados possíveis.
8. Subjetividade, estética e complexidade
O átomo do simbólico também se articula com os elementos alfa de Bion, pois atua como condensador da experiência emocional bruta em algo representável. Em vez de interpretar a partir do significante vazio, trabalhamos a partir da pulsação simbólica mínima, que organiza a percepção.
se me encontro é na bifurcação
Aqui entra também o pensamento de Schiller, para quem a formação estética é constitutiva da liberdade subjetiva. O micropoema não apenas informa, nem apenas comove: forma. Forma subjetividade. Forma presença. Forma escuta. Forma pensamento.
para passear
preciso dobrar esquinas
9. Fissão, ressonância e tabela periódica simbólica
Propus que, assim como o átomo físico pode cindir-se e liberar energia, o micropoema pode produzir uma fissão simbólica: romper estruturas rígidas da linguagem e liberar novas associações. O resultado é uma rede de redes, capaz de gerar campos de interpretação conforme o leitor, o contexto, o tom, o ritmo.
em abundância de cadeiras
assentos sem sentido são
Esse efeito se potencializa quando os micropoemas são articulados entre si, como substâncias combinadas. É isso que permite conceber uma tabela periódica de micropoemas: um arquivo poético- simbólico dinâmico, vivo, de combinações infinitas. Como na química, a potência reside na articulação, e não apenas nos elementos isolados.
Indo sou
10. Conclusão: rumo a uma epistemologia do átomo simbólico
O átomo do simbólico não é uma metáfora — é um conceito operativo. Pode ser aplicado à clínica psicanalítica, ao campo educativo, à arte, à filosofia, à teoria dos sistemas, à linguística e à inteligência artificial. Diante da saturação de significantes vazios que atravessa a cultura contemporânea, esse átomo condensado de significação pode funcionar como uma unidade mínima de sentido vivo. Sua forma é breve; sua potência, inabarcável. Este ensaio não encerra nada. É mais uma dobra. Uma fissura inaugural.
a linguagem é uma dobra / a palavra / um tambor sem pele
Alcimar Alves de Souza Lima. Médico psiquiatra, psicanalista e professor no Instituto SEDES Sapientiae (SP).
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