Um lobo no quarto I Claudia Nina
“Às vezes, as coisas desaparecem diante dos nossos olhos. Sem barulho, sem aviso. E o que fica é apenas o vazio, um espaço onde antes havia algo – e que, de algum modo, continua nos olhando”.
Haruki Murakami, O elefante desaparce
Sônia tem a chave de casa. Nunca sei se vou estar de pé para abrir a porta. As noites em claro são uma tentativa de acalmar a sua ferocidade, fazer com que ele tome os remédios que irão amansá-lo dentro da sua jaula para que eu possa tentar dormir algumas horas ou minutos, enquanto ele some na escuridão. Eu na minha noite e ele na dele.
Os vizinhos já desconfiam. Está cada vez mais difícil esconder. O senhor do 508 me olhou no elevador com cara de quem sabe a verdade, mas desviei para que ele não me julgasse ou escrevesse no livro das reclamações: ela tem um lobo.
Aquele dia de maio foi o último momento em que saímos na esperança de fazer um passeio tranquilo. Chegamos na sorveteria e tudo corria bem, ele estava até calmo considerando sua natureza selvagem. Ninguém ao redor suspeitava minimamente que a qualquer momento, ao meu lado, os dentes dele poderiam abocanhar quem estivesse perto – eu teria sido mordida nas costas ou perdido as orelhas enquanto comprava a casquinha de baunilha. Talvez fosse até melhor. Eu perderia as orelhas, mas me livraria do segredo.
A volta para a casa foi o terror. A aparente calma se desfez ao longo dos poucos metros que separam a sorveteria da jaula. Retornamos com pressa, minhas mãos fincadas na pele dele deixaram marcas profundas e cheias de sangue – se eu não o segurasse com brutalidade ele teria avançado nas crianças que saíam da escola exatamente naquele instante. Tentei arrastá-lo para longe da calçada, próximo à rua, mas a fileira dos táxis impedia o movimento mais rápido. Quase fomos atropelados. Sei que muita gente viu a cena e não pode compreender o que era eu e ele, ali, nos arrastando em quase luta corporal. Entramos aos solavancos na portaria e subimos pelo elevador da garagem.
Depois daquele dia de maio, soqueio-o de novo dentro do quarto porque lobos não podem conviver com pessoas. Só tive força porque os remédios tiram parte da gana dele.
Deixo o prato de comida e os remédios. Sou a única ponte de comunicação entre a selvageria e a humanidade. Já pensei em não correr o risco de alimentá-lo e pedir que outra pessoa faça o serviço, mas como explicar que abrigo um selvagem?
A Sônia tem me questionado muito. Olha para mim com cara de pena. Ela ouve os ataques, as unhas arranhando as portas, o jeito dele mais próximo das florestas do que da civilização. Aceito com humildade as preces que ela faz para que eu não desanime, não mergulhe no fundo do copo para sempre. Outro dia ela me deu as mãos e orou na sala, enquanto eu chorava. Ela acha que um dia tudo isso vai passar em nome do Senhor Jesus. Ela não sabe da verdade, mas desconfia.
O que Sônia não sabe é que não se cura uma condição. Eu como pessoa não posso deixar de ser pessoa, mesmo que as orações dela peçam para que eu vire uma borboleta e saia voando para sempre daqui. O mesmo ocorre com os lobos. Eles não podem virar pessoa. A aceitação iria me fazer bem, mas ainda reluto em acreditar que trouxe para a casa um animal na pele de gente. Ele talvez também não conheça suas profundezas. Quando ele dorme de tarde me dá medo. Não sei se devo abrir a porta e checar se ele está vivo ou morto. Um dos remédios pode ser fatal. Não seria minha culpa.
Tem dias em que eu também não sei se estou viva ou morta. Talvez esteja bebendo demais, a ponto de passar poucas horas sóbria. A alternativa seria ficar de pé, acordada e alerta, retilínea e disposta para o trabalho de domadora. Até tentei, mas a noite em que quase perdi um dedo ao tentar abraçá-lo com ternura me fez desistir deste papel. Não sou capaz de me manter consciente o tempo todo no meio deste pesadelo que é viver com um lobo dentro de casa. Perdi um dedo de fato.
Demorei a descobrir que abrigava um lobo. Eu tinha tanto amor, mas as tentativas de amar aquele ser se tornaram impossíveis diante das suas garras que cresceram assustadoramente ao longo dos anos. Ele perdeu a doçura e o sorriso em pouco tempo. Tornou-se uma espécie de monstro sem que eu pudesse deter aquela evolução. Quando percebi já era tarde. Mesmo se eu tivesse percebido antes – o que faria?
Um dia chegaremos ao limite – ou ele ou eu. Não caberemos na mesma jaula. A menos que eu suma e o deixe apodrecer. Já ensaiei sumiços, mas logo descobririam a verdade e iriam atrás de mim. Pessoas não podem sumir sem acionarem gatilhos de busca. Quem iria à minha procura?
Sinto uma pontada de dor extrema no coração ao pensar que, mesmo sendo um selvagem, bestial, devorador, é um ser vivo. Tento buscar a humanidade impossível em seu olhar. Amanheço com a esperança infantil de que tudo isso é um delírio ou que logo ele vai acordar manso e feliz. O confronto com seus primeiros urros matinais me impede de acalentar o sonho do delírio. Sônia está à espreita de mim, como se o animal fosse eu.
Há vizinhos por toda a parte. Odeio todos eles. Fingem compaixão nos elevadores, exibem suas famílias calmas, voltando do mercado, natação, balé. São todos iguais e fazem tudo igual. Sei que eles me desprezam. Percebem meu jeito tonto quando estou cheia de álcool ou cheia de sono. Aperto o botão de vários elevadores ao mesmo tempo quando escuto vozes. Fujo o máximo que eu posso. Desde aquele último dia do sorvete nunca mais saí de casa com meu lobo para não ter que disfarçar a loucura da minha vida. O que dizer quando um ou outro resolve me dar conselhos? Nunca pedi ajuda. Quero que esqueçam, me ignorem. Eu deveria me mudar para uma floresta.
Não tenho rotina porque cada dia depende de como a fúria ou a súbita tranquilidade induzida por remédios irão me despertar. Tento incluir tarefas corriqueiras no meu dia, como fazer um curso ou assistir a um filme, mas tudo pode ser revirado de uma hora para a outra. Talvez eu esteja em um cativeiro.
A Sônia arranjou outro emprego. Vai fazer marmitas congeladas. Não acho que seja mentira. Ela tentou me ajudar, mas, como eu disse, não há cura para a condição.
Tenho medo de procurar ajuda e expor o lobo que eu deveria amar com devoção. Sei que não tenho culpa, mas quem me dirá isso?
Ando pela casa com os pés em silêncio para comer ou ir ao banheiro. Ele escuta muito bem e acorda com qualquer barulho. Prefiro que ele durma já que não podemos conversar ou ver um filme. Um dia, quem sabe, irá furar o chão e sumir. Aleluia.
Preciso comprar ovos. A geladeira está vazia. Não posso deixar o bicho com fome. Ele fica muito irritado. Faço uma lista agora que estou sozinha. A Sônia tinha dito que viria esta semana, mas vazou. Melhor. Vou encontrar alguém para me ajudar na faxina. Imagino a sujeira daquele quarto. Tenho que entrar lá para limpar, há séculos não faço isso, passar um pano enquanto ele dorme, mas não tenho coragem. Como estaria a jaula? Sinto um cheiro forte vindo pelas frestas da porta, invadindo a pequena casa como se fosse uma pessoa extra, um duplo, uma sombra. Tenho medo.
Vou ao mercado. A casa está em silêncio, então presumo que ele esteja apagado. O aperto no coração. Sinto uma mistura de pena, amor e remorso. Queria tê-lo amado.
Volto, e a porta da cozinha está entreaberta. A Sônia deve ter aparecido para pegar coisas esquecidas, mas não a encontro. Devo ter esquecido aberta, lá fora está ventando. Guardo as compras e preparo a refeição da manhã para deixar na soleira da porta do quarto. Sinto um cansaço imenso, como se meu corpo pesasse toneladas. Minha vida se arrasta em uma luta em sem fim. Não vejo saída para fora deste martírio.
Ando pelo corredor lentamente, como sempre. Qualquer movimento brusco pode acender uma faísca. Tenho nas mãos uma bandeja com ovos e presunto.
Deixo a bandeja no chão e grudo o ouvido na porta – silêncio. Não sinto movimento nem ruídos. Será que ele ainda dorme?
Fico meia hora na porta do quarto à espera de algum som. Nada. Vou ter que entrar mesmo sem saber o que esperar lá de dentro. O medo é devorador.
Mexo na maçaneta, viro a chave. Não, não está trancada. Quem teria aberto? A jaula é fechada por fora, tem um banheiro, água, tudo o que o lobo precisa. Ele não pode se soltar pela casa, por isso a fechadura. Entro no quarto. Está tudo escuro.
Não acendo a luz porque ele vai acordar assustado. Entro na escuridão como quem invade o pesadelo de alguém – no caso, meu próprio pesadelo.
O quarto escuro está cheio de sombras amontoadas. Onde está o lobo? Tento não fazer o gesto fatal, o de acender a luz, mas como encontrá-lo se não ouço sequer uma respiração?
Preciso vencer o medo mesmo que seja atacada em breve. Acendo finalmente a luz. Entro pé ante pé no quarto. Vasculho com o olhar o chão, as paredes, a cama, o banheiro. Nada. Nem vestígio. Tudo revirado.
Não há lobo. Nem seus rastros, nem sangue. Sento-me na soleira da porta sem saber o que pensar. Estou tão cansada que não tenho energia para raciocinar. Falta-me forças para me levantar do chão, ir até a portaria e perguntar: “Vocês por acaso viram um lobo à solta por aí?” Talvez agora a melhor estratégia seja não fazer nada, permanecer imóvel. Um sentimento de extremo vazio me faz estranhar minha condição no mundo – sou um ser imprestável, não fui capaz de cuidar do animal que era meu, só meu. Não posso culpar a Sônia nem ninguém. Não fui capaz de amá-lo. Esses pensamentos todos acontecem enquanto estou sem reação, parada na soleira da porta, a bandeja de ovos e presunto ao lado. Ele devorava tudo o que eu lhe trazia. Nosso contato era breve e intenso. Ele me olhava com uma mistura de raiva e abandono. Ambos nos tornamos prisioneiros na mesma casa, ele na sua jaula e eu na minha. Fico horas sentada, sem reação. E agora? O que vai ser de mim? Onde ele estaria? Será que alguém o levou daqui para um abate? Quanta piedade eu sinto do meu lobo. A mistura de sentimentos é algo perturbador. Depois de algum tempo inerte, me levanto, fraca e perdida, vou na direção da janela. Abro as cortinas e deixo que a claridade limpe as sombras do quarto-jaula. Ele não poderia ter pulado porque há grades. Essa opção inexiste. Desisto de pensar nas alternativas. Aceito o mistério e tento mergulhar de algum modo na luz. Providencio produtos de limpeza para higienizar o ambiente, limpar tudo, arejar, tirar dali os vestígios da existência bestial. Ligo o ventilador para espalhar os possíveis restos de pelos espalhados, embora não os veja. Na verdade, não consigo ver nenhum dos rastros deixados pelo lobo, além da bagunça. Roupas jogadas, cama desfeita, a lixeira do banheiro imunda, banheiro imundo. Como pude negligenciar a limpeza da jaula só por medo. Novamente o sentimento de piedade por aquele a quem deveria amar torce minhas veias. Onde ele está e como fugiu sem ninguém ver? Procuro ruídos dentro das paredes, quem sabe elas o abriguem dentro das tubulações. Vasculho cada centímetro do quarto à procura de pistas, não encontro. É como se jamais ele estivesse estado ali. A bagunça parece um desleixo e não o sinal de que um animal esteve na jaula por tantos anos. Onde os vestígios do corpo? O cheiro é de banheiro sujo que poderia ser de restos humanos. Onde procurar meu lobo? A polícia não acreditaria em mim. Perco a noção do tempo, estou esfarelada de cansaço, desisto de limpar o quarto. Fico esparramada no chão, à soleira da porta. Tento esquecer que ele existiu e, de repente, vislumbro a única alternativa possível para o mistério – fazer do esquecimento uma verdade. O delírio sou eu. Quem tomava os remédios era eu, não ele. Eu misturava no copo e criava alucinações, embora talvez nunca seja capaz de explicar por que perdi um dedo. Tento sumir no mesmo chão onde ele, caso tivesse existido, sumiu. Fabrico a melhor de todas as soluções, quem irá suspeitar? Sônia não está aqui para testemunhar nada. Os vizinhos nunca se interessaram em conhecer meu pesadelo.
Não, não há lobo no quarto agora. Recolho as janelas e me acomodo na cama. Tranco a porta e me isolo do mundo como se estivesse em uma pequena floresta urbana. Nossos mistérios bestiais – como entender as profundezas dos nossos assombros?
Claudia Nina nasceu no Rio de janeiro. É Jornalista e doutora em Letras pela Universidade de Utrecht, na Holanda, com tese sobre Clarice Lispector, publicada pela Editora da PUC-RS (A palavra usurpada). Autora de romances, contos, livros infantis e juvenis, sua obra transita entre a memória, o afeto e a invenção literária. Assina uma coluna de crônicas mensal no Jornal Rascunho e tem um podcast chamado “Histórias que a vida conta” narrado pela própria autora e disponível em todas as plataformas.













