“O corpo… esse delicado instrumento de viver”
Clarice Lispector
Alguns livros chegam ao nosso lado com a discrição de um gesto quase imperceptível, instalando-se antes mesmo de nos darmos conta. Não anunciam nada, não reclamam presença; limitam-se a respirar devagar até percebermos que já estamos dentro do seu ritmo. “Corpus” (Através Editora, 2025), de Raquel Miragaia, é um desses livros discretos e atentos, composto por catorze relatos que se movem entre sombras leves, pequenos gestos, silêncios que se insinuam sem dramatismo. A capa, com Woman Undressing de Egon Schiele, antecipa essa poética da vulnerabilidade exposta, da carne que pensa e se inclina.
O primeiro conto, que dá nome ao volume, é a porta de entrada para a inquietação central: a relação entre o corpo e o mundo. Não a relação higienizada, nem a abstracção conceptual, mas o momento em que o corpo falha, vacila, reclama uma atenção que a mente, ocupada em ideias, tenta adiar. Como escreveu Simone de Beauvoir, «o corpo envelhecido deixa de ser aquilo com que contamos e torna-se aquilo que nos acontece», e é precisamente essa zona de fratura que a autora percorre, o ponto em que a consciência permanece lúcida, mas a matéria já não obedece.
Ao acompanhar Rosa, a professora octogenária que perde gradualmente autonomia, voz e consistência física, o livro aproxima-se daquela intuição que a filósofa italiana Adriana Cavarero formula sobre a singularidade de cada vida, não existe corpo neutro, nem biografia abstracta. Cada existência é esta, situada, irrepetível, escrita nas quedas, no fio de baba limpo com um lenço de renda, na mão da filha que levanta, lava, veste e, por fim, prepara o cadáver. O corpo torna-se arquivo de uma história que só pode ser contada a partir de dentro.
E, no entanto, a força de Corpus não está apenas no que o corpo sofre; está no modo como se move. Como cada personagem ocupa o espaço, como se descola dele, como se arqueia ou resiste. Raquel Miragaia escreve a partir dessa coreografia discreta onde os gestos revelam mais do que as palavras, uma ética da atenção que confirma, quase à letra, a intuição de Simone Weil: a atenção é a mais pura forma de cuidado.
Um gesto pode conter uma biografia inteira.
É especialmente significativo que grande parte destes relatos tenha sido escrita em momentos distintos da vida da autora. O tempo escorre por Corpus com essa sabedoria antiga das coisas que não se apagam. Os temas regressam, insistem, tornam-se teimas, como ela própria reconhece. O corpo, o silêncio, a ausência, o trauma, a beleza, tudo reaparece como se a autora se aproximasse do mundo sempre pelo mesmo flanco misterioso.
A divisão do livro em quatro secções — Ausência, Silêncio, Futuro, Beleza — é uma travessia emocional, parte-se da morte e das cicatrizes para chegar a um lugar onde a esperança ainda respira. O último relato, uma história de amor luminosa, não encerra o livro por acaso. É abertura. Depois da dureza, um gesto de clemência.
O silêncio funciona como matéria narrativa. Há frases que se detêm antes da conclusão, há imagens que pedem ao leitor que avance sozinho. Raquel não teme interpretações desviantes; aceita-as como parte da natureza porosa da literatura. Cada leitura inventa um corpo próprio. Quando surgem rupturas súbitas, violências inesperadas, traumas que se precipitam sem aviso, não são decorativas, são lembretes. No meio da normalidade, o mundo ainda pode partir-se. E o livro não foge dessa consciência.
O que Corpus confirma, acima de tudo, é a afirmação da própria autora de que a arte não precisa de grandes extensões para dizer muito. Um gesto pode conter uma biografia inteira. Um silêncio pode revelar um destino. Escrever, aqui, é manejar o que se retém, mais do que o que se expõe. No fim, fica a sensação de ter entrado num território onde o humano é visto à lupa, não para o ampliar, mas para o compreender. Raquel Miragaia oferece um livro firme, atento e subtil, que escuta os corpos e devolve ao leitor uma pergunta antiga: quanto de nós cabe num gesto?
Fotografia de Raquel Miragaia: Charo Lopes.











