O Ciclo do Vento ao Contemplar as Estações I Poesia de Francisco Gomes
[para Jorge Luis Borges]
I.
Cíclico é o distanciamento
entre marés, sereias e marinheiros:
o encantamento com a imensidão
do nunca atingido.
II.
Cíclico é aproximar-se
do precipício, sentir o hospício
no sal do venerado cio do instinto:
propulsão do corpo em direção ao vício.
III.
Cíclico é abster-se de si
dentro de si na frieza dos dias quentes
sem aparentes desastres:
frágeis limitações do ser.
IV.
Cíclico é o além do inabitável sopro do vento:
quando as folhas caem,
restam outonais abismos
ou silenciosos sussurros
que nos (a)traem?
*
INSUSTENTÁVEL
[para Alejandra Pizarnik]
É insustentável
acompanhar o ritmo das marés
e perseguir o silêncio
em noites de prévias aventuras.
Seguir quilômetros e quilômetros
de areia
— púrpura ventania
soprando o pó dos desencantos
nas doidas e doídas têmporas
do teu passado
tão presente
de desventuras.
É insustentável
colher a lua
após o pôr do sol de domingo
quando os olhos já não lambem o céu
e as cicatrizes tornam-se feridas.
É insustentável…
Insustentável dar o próximo passo
diante de anjos de sal
que são diluídos
entregues à fluidez límpida
na sede
que cede
ao delirante
desejo líquido.
*
A FLOR QUE FITO
[para Tristan Corbiére]
A flor que fito
distante
no fátuo eflúvio do horizonte — fovismo,
sinestesia provocante-canto-de-sereia,
é abismo:
ilusão desnorteadora do tangível.
A flor que fito
errante
fincada na ferida a fogo a ferro
— lágrimas de sangue e um berro —
pela pétala de brutalidade instigante
torna-se
num sopro paradoxal
singular suave bela.
Tão bela essa flor mutante!
A flor que fito
descomunal
habita a visceral entranha:
tamanha é a força instintiva primal
fricção carne-carne
afago que arranha
fluido corporal.
A flor que fito
embevecida
também fede também cheira,
não é Amor
nem flor amarela.
A flor que fito
— nudez-mais-que-merecida —
não é Vênus de Milo,
só o sonho revela.
*
PERMANÊNCIA PERENE EM ESTADO DE SER-EM-SI
[para Orides Fontela]
Sofro de flor.
A beleza da cor mora num morro
lá onde a alma brejeia o silêncio da tarde.
(o sol caindo…
vindo agora a saudade…)
Todos os dias
pétala por pétala
o tempo despenteia o ser plantado ali:
existência enraizada em si.
Só os pássaros norteiam o Aonde
Só o vento traz/leva o Aqui…
Sofro de flor.
Parado permaneço próximo do pouso
de um passarinho
que acaba de levantar voo.
*
RESQUÍCIO
[para Al Berto]
Nenhuma súplica transcende
o perfume dos jasmins pairando sobre aqueles
que acreditam
no viver-não-é-o-suficiente.
viver é além do sim não às vezes
assim como as mãos são lógicas
quando mergulham no intocável do escuro
tateando
um resquício
daquilo que se foi aceso
e ainda brota
nos gestos do esquecimento
apagando
os corpos.
*
MEUS OLHOS ÁCIDOS NÃO MENTEM
[para Ana Cristina Cesar]
Meus olhos ácidos não mentem.
As flores sempre perdem a força bruta da beleza.
A suavidade agridoce
nas coisas
há tempos nos abandonou.
Agora somos fruto da escassez
cientes dos experimentos ocres
das ilusões.
Meus olhos ácidos não mentem.
Nossas vozes distantes
impregnam o ar de lamurialâminas.
A volúvel geometria
das coisas
já não perpassa meu olhar alquímico.
Agora somos
caçadores de mitos
desfibrando o inaudível dos abismos.
*
HÁ UMA FLORESTA EM MIM
[para António Salvado]
Há uma floresta em mim.
Sim,
há uma floresta em mim
plantada em meu peito
bem no fundo
no fundo mais negro.
Há uma floresta
densa
fechada
úmida e inóspita
no que resta de mim
onde mariposas em arroubos loucos
pousam e acinzentam
os astros incógnitos da infância.
Há uma floresta em mim
de fria folhagem-faca
que corta a manhã da saudade.
*
O CANTAR DO TEMPO DÓI
[para Paulo Tabatinga]
O cantar do tempo dói.
O céu é sentinela, testemunha silenciosa
das ruínas de sentimentos mutilados
expostos, encontrados
a cada metro quadrado.
Vã estrada errante diante dos olhos
e do futuro
ao contemplar o inalcançável horizonte
no bater de asas do metafísico pássaro de Paulo
numa paralaxe-fotografia:
anjo de pedra atônito no espaço
ante a crepuscular amargura
do mundo.
Francisco Gomes é brasileiro, piauiense de Campo Maior e vive em Teresina. Poeta, músico e bacharel em Letras/Língua portuguesa, publicou as obras A aurora no bocejo de um tilacino (2024), Um outro universo ou tonal (2021), O despertar selvagem do azul cavalo domesticado (2018), Face a face ao combate de dentro (2016), Aos ossos do ofício o ócio (2014) e Poemas cuaze sobre poezias (2011). Dedica-se cotidiana e arduamente à poesia, num trabalho de pesquisa, leitura, contemplação e escrita. Admira a carência orgulhosa dos gatos e a tranquilidade dos jabutis.
Foto do autor: Matheus Cardoso.














