“Vistas da rua” por Everardo Norões
Subo os doze andares. Dali, avisto ruas, campanários, telhados enegrecidos. A cidade amarelenta amparando nuvens baixas vindas do mar. Um pequeno esforço e venço os sete passos da pequena escada. A última. Sete degraus levando a um compartimento pequeno, aspeto de casamata, no cimo do edifício. Uma janelinha aberta para uma fauna humana a ser observada preferencialmente das alturas. Faz-me sentir como se me tornasse como a pequena estatueta exposta sob uma campana de vidro na cômoda do quarto de uma tia. A que vive sozinha, no desalento, cujo único divertimento é o aguardar a hora das orações. Na mesa de cabeceira aquela estatueta de santa tem olhos fixos em quem a olha, não importa o ângulo do qual a observemos.
De certo modo, sou como aquela estatueta. Daqui o que vejo é um horizonte arredondado. Parecido àquela paisagem de um quadro em que o diabo provoca o Cristo em cima da montanha a lhe dizer:
– “Terás tudo o que quiseres se me adorares”.
Porém, no cimo do edifício, nada é possível encontrar senão o próprio vazio. Por isso, aprecio subir até aqui cedo pela manhã quando a noite vai se escoando sem pudor. E uma lenta claridade vai mudando o sentimento das ruas. E também os meus. Aos poucos, elas, as ruas, vão sendo tomadas pelo alvoroço.
O bar da esquina com suas putas.
O vendedor de tapetes estendendo um de seus exemplares na fachada da loja. O moço na oficina de consertos detrás do balcão com ferramentas estranhas. É o princípio da movimentação na praça ao lado. No seu centro desembarca o mágico aliciando adolescentes com seus truques. Como o do lenço vermelho que faz desaparecer uma moeda logo transformada numa pequena bailarina nua. Ou o da água metamorfoseada em perfume quando ele cobre e descobre o lenço envolvendo o copo de cristal.
Suspeito que o lenço guarda algo além de simples gotas de lavanda. Pois, às vezes, ele sugere a alguma das meninas cheirar aquele perfume e ela logo começa a conversar com sorrisos estranhos. É um pouco mais tarde que aportará na rua à esquerda o louco que costuma medir a distância entre o chão e o topo do edifício. Em nossas conversas, descobri o sentido daquela sua mania: a preparação do salto. Uma espécie de exercício de abismo, segundo confessou. Assim pode constatar o quão imenso é seu poder de dominar o vazio. É o que me assegurou numa das vezes em que nos encontramos frente à farmácia da esquina.
Essa tal mania apossou-se dele logo que começou a escorrer por suas veias o veneno do desatino. Período em que assistia obsessivamente na TV o filme da travessia de um funâmbulo sobre um arame interligando as Torres Gêmeas, em Nova Iorque.
Na época, a família findou por contratar alguém para observá-lo de longe, preocupada com aquela sua ambição de se tornar um homem-pássaro. Aos poucos, ao que parece, foi desistindo da proeza. Havia adquirido manias menos arriscadas.
Àquela hora da manhã algumas janelas ainda se encontram fechadas.
Uma delas, a da esquerda de um terceiro andar, abre-se sempre mais cedo. Ou melhor, entreabre-se. Dela, emerge uma MÃO a acenar para alguém da vizinhança que nunca aparece. Então, a MÃO lança na rua um detrito de noite e resta no ar aquele gestual delicado. Além da dúvida do não se saber de quem…
Fico atento.
De súbito pode reaparecer aquele que se autodenomina o apanhador de lixo. É diferente dos colegas de trabalho que se envolvem com os dejetos da cidade. Veste uma indumentária diferente, impecável. Luvas e um macacão quadriculado. Além de um chapéu que o abriga da chuva e do sol, trocado a cada semana por um outro de cor diferente. Segundo ele, para livrar-se das dez pragas do Egito e poder rumar a caminho da terra de Canaã.
É o que revelou numa manhã de segunda-feira, a rua quase deserta, após um fim-de-semana agitado. Desde então, ficamos amigos. De vez em quando, ao perceber que estou no meu bunker aéreo, faz um sinal com o polegar erguido. Ou acena para que eu desça para partilharmos o que ele chama um dedo de prosa.
Uma vez por semana, geralmente nas sextas-feiras, é avistado em companhia de um homem sempre acompanhado de um cão de olhos avermelhados que respira com o ofegar dos bichos perversos. Ele e o homem permanecem algum tempo conversando, enquanto afagam o animal. São parecidos. Mesmo nariz adunco, boca polpuda, cabelos encaracolados, meio ruivos.
Nunca fala daquele que julgo ser o irmão. No fim da conversa, o outro sempre retira algo do bolso e lhe entrega. Então, despede-se com pressa. O Varredor, com ar de contentamento, segue rua afora.
Desaparece.
O único sentido de restar ali talvez fosse o de aguardar aquele homem de terno e sapatos verniz brilhando ao sol. Sempre me prometo abandonar meu observatório. Nada usufruo disso, a não ser imaginar episódios que nunca acontecem. Ou o pensar como seria se vivesse em meio àquela espécie de balé que se repete a cada dia. Sempre igual e diferente. Mesmos ingredientes da adrenalina, piedade, inveja, loucura ou do ódio. Dedico algumas horas para entregar-me a esse ofício desconhecido.
O de deslindar o que as pessoas imaginam ser o Nada.
Não sei como será deglutido o que presencio quando estiver frente à alguma tela em branco. Com o tempo adquiri a compreensão de que serei simples copiador de um cotidiano nem sempre inusitado. O desenrolar de uma história depende menos da natureza dos acontecimentos do que da imaginação de quem a conta. E ela, a imaginação, é como um vasto campo que necessita de adubo.
Por isso, à noite, converso com os amigos.
Mendigos, meninos de rua, mulheres que passeiam bolsinha ao lado e aquele jeito de fisgar animais solitários. Sento numa mesa no bar do bairro, escolhido pela qualidade da cerveja e por ser amigo dos garçons. Aproveito para encetar alguma prosa em torno de dois ou três clientes conhecidos por episódios pouco banais. Imagino como devem se comportar na intimidade. O quanto suas mulheres sofrem ao escutarem cochichos no cabeleireiro, na manicure, nas festinhas de família.
Quanto a mim, nada disso interessa. O que conta é o que avisto ao longe. O de perto não me causa emoção. Talvez por isso, quando subo as pequenas escadas da minha casamata, findo por dizer a mim mesmo:
– Afinal, o real não existe!













