Entrevista com Inez Andrade Paes: “Silêncio Aberto é uma memória colectiva: das geografias, a Língua una”

Há poéticas que se prolongam como uma maré, recuam, voltam e permanecem. A de Glória de Sant’Anna é uma delas e o centenário do seu nascimento devolve-nos essa ondulação através da antologia Silêncio Aberto, coordenada por Inez Andrade Paes, filha da poeta.
Mais do que uma homenagem, este livro é um gesto de escuta e de continuidade. Reúne cem autores de várias geografias da lusofonia que, ao convocarem a memória de Glória, também interrogam o presente: o lugar da poesia, da língua e da resistência.
Nesta conversa com a Quiasmo, Inez fala sobre a origem da antologia, das marcas africanas que atravessam a obra da mãe e da persistência de uma poética que transforma o silêncio em expansão – mas também da sua própria experiência como poeta, onde essa herança se prolonga e se renova.
O título Silêncio Aberto contém em si a ideia de recolhimento e de expansão. Como nasceu essa escolha e que eco encontraste nela da poesia da tua mãe?
Silêncio Aberto é o primeiro verso do poema Silêncio*, de Glória de Sant’Anna. Aqui ressoa a voz da poeta, que em si abrange várias margens, como uma onda que se recolhe e se expande. A escolha deste verso não foi só minha foi também a de dois dos meus irmãos, a Andrea e o Rui.
Como o verso indica foi nossa intenção transformar a taciturnidade do discurso (ou a ausência de discurso) em que a sua poesia ficara. O grito de um poeta é muitas vezes um grito silencioso e nos versos de Glória de Sant’Anna, esse silêncio, diluiu-se na mesma água que evoca constantemente na sua poesia. Abrir e expandir a coberta transparente que a tem sistematicamente envolvido, como forma de encontrar na sua voz caminhos para outros poetas. Uma dádiva.
A vida em África marcou intensamente a obra da Glória. Como sentes que essa experiência moldou a sua voz poética e de que forma isso foi importante para ti, como filha e como coordenadora desta homenagem?
A vida em Moçambique moldou e fixou a sua poesia no Índico. A língua transcreve-se do lugar de nascença, Lisboa, para um outro lugar a que posso chamar mato e que ela própria refere nas primeiras crónicas que escreve (ainda por publicar). Neste mato, primeiro em Nampula com a sua diversidade de cores e sons e depois em Pemba, que a esses, acrescentou uma orla costeira de transparência única onde a turmalina do mar, sistematiza, estrutura e dá continuidade à sua voz poética, iniciada na adolescência em Portugal. O tempo em Moçambique é oblíquo a tudo o que surge na sua escrita, ponto de partida para um lirismo que veio estabelecer uma transformação das vozes poéticas moçambicanas. Demonstra-se instalado com a poeta o lirismo.
Coordenar esta homenagem foi, e é, importante para mim. A sua voz é actual. Há assim uma continuação do seu trabalho independentemente das dificuldades que possamos enfrentar por parte das estruturas literárias, dos grupos e das possíveis nódoas que lhe queiram deixar. É uma forma de, pessoalmente, continuar a dar voz a uma pequeníssima parte do seu trabalho e manter viva a sua poesia e o seu nome.
Como eu já disse numa entrevista: podem matar o poeta mas nunca matarão o poema.
Da Mãe uma constante sombra que ilumina e ressurge, com mais força, nos longos anos de presença. A rectidão obrigando a estar constantemente em reflexão.
Esta antologia celebra o centenário da Glória de Sant’Anna. O que significa para ti organizar, neste momento, um gesto coletivo de memória que atravessa gerações e geografias?
É recuperar entre as vozes, a voz. É envolver a voz em todas as outras vozes. É considerar a razão do que pode existir da permanência e da persistência em que cada uma destas vozes insiste e para que esta voz homenageada possa servir de plataforma para umas, de sustentabilidade para outras, de união entre todas, recordando também as que estão esquecidas e foram parte da sua geração. Estamos num tempo preocupante, um bom poema, um bom texto, a literatura em geral poderão ser informação e constituir base para a reflexão da paz.
Uma memória colectiva.
Das geografias, a Língua una.
Além disso, a afirmação, a resistência, a luta contida em cada uma das vozes, existe sempre. O medo tolhe o corpo mas não impede a mão. O respeito e a dignidade de um corpo responsabilizam automaticamente o sujeito. Na dúvida, o esclarecimento.
Uma memória colectiva. Das geografias, a Língua una.
Além disso, a afirmação, a resistência,
a luta contida em cada uma das vozes, existe sempre.
A poesia de Glória de Sant’Anna fala também da diáspora, da memória e da travessia. Como procuraste dar visibilidade a essa dimensão na antologia?
Penso que através dos autores que generosamente participam na antologia estabelecem-se várias percepções e análises, reflectidas também nos olhares dos que não são diáspora mas que se encontraram como parte do corpo diaspórico e contribuíram unindo a sua mensagem à autora. Todas actuais.
No seu tempo, a diáspora talvez fosse apenas intima, só sentida do lado do autor – o território geograficamente era considerado o mesmo – daí a diferença entre a do seu tempo e esta, que volta a fazer-nos pensar, e que com muito maior facilidade de meios absorve o todo.
De uma maneira ou de outra falamos de um deslocamento de lugar.
Reunir cem autores não é apenas um gesto de homenagem, mas também de afirmação do vigor de uma voz poética. Que critérios guiaram as tuas escolhas editoriais e que surpresas te trouxe esse processo coletivo?
Com anos de contacto, leitura, pesquisa e observação reuni uma lista de autores, que poderiam de alguma forma perceber e ter interesse em conjugar os seus escritos ou outros trabalhos, com os de Glória de Sant’Anna. Procurei autores que comunicassem uma afinidade com a maneira de dizer e de sentir da poeta. Uma corporeidade afectiva, uma quase sobreposição, uma localização espiritual com a raiz da poesia da autora.
No fundo deixei que cada um sentisse o convite para que fosse percebido que se há uma intenção de antologiar vozes, paralelamente a esta voz, haverá interesse em manter o seu trabalho e publicá-lo.
Curiosamente começam a revelar-se reflexões sobre a ressonância de política e sociedade subjacente ao aspecto humanitário na estrutura lírica da poesia de Glória de Sant’Anna. Encontra-se entre poetas uma linha de paralelismo e simultaneamente diversidade, ainda constante no confronto entre intervenção e lirismo.
Através dos autores que generosamente participam na antologia estabelecem-se várias percepções e análises, reflectidas também nos olhares dos que não são diáspora mas que se encontraram como parte do corpo diaspórico e contribuíram unindo a sua mensagem à autora.
Ao revisitar a obra da tua mãe, que redescobertas fizeste que talvez só agora, com o tempo e a distância, se revelaram?
A poesia da Glória é sucinta. As palavras respiram mas com um peso bem medido.
Uma fábula contada em ensaio é uma arma poderosa como defesa. E de maior interesse quando aplicável a sistemas viciados, cujo objectivo principal é anular e deturpar. A síntese descarta o fala-barato. Não precisamos de escrever muito para contar desde que se consiga sintetizar.
Como imaginas que Silêncio Aberto se projetará no futuro — tanto na permanência da obra da Glória como no diálogo com novas gerações de leitores e poetas?
A meu ver é estanque, marca um momento preciso: é como um poema que nunca se esquecerá. Poderá ser perpetuado por ter sido acolhido por tantos e diversos autores. Os leitores procurarão ver quem se aproximou dela depois do oxímoro abstracto, que se estabeleceu. Da escolha, uma orientação para o leitor perceber a voz de outros poetas.
– resistirá –
Foi preciso conhecê-la muito bem e ter sabido das suas intenções e justiça para seguir e erguer este projecto. Ajudou-me o facto de estar à frente de um Prémio Literário de seu nome. Luta-se sempre com imensos obstáculos surgidos de muitos lados, alguns até que teriam estado latentes mas, sabendo que a escrita se ergue a qualquer hora, os autores normalmente estão atentos. A resposta pode ser lenta na chegada mas haverá sempre uma, mesmo que pálida e frágil.
Como uma eterna tatuagem, figurará sempre uma nódoa nos dedos de quem tente anular o Poeta.
O silêncio foi aberto.
Depois de concluída a antologia, o que ficou em ti como filha, como poeta e como leitora de Glória de Sant’Anna?
Serenidade e um bom antídoto para o veneno activo. Um contraveneno. Uma constante necessidade de apreender tudo em retrospectiva com a severidade, o humor e a rectidão, que a poesia nos exige. Da revolta a união de estabelecer um equilíbrio através das palavras sem nunca esquecer a terna voluntariedade que ela via em mim. Antes de partir repetiu-me que a procurasse todos os dias no horizonte. Como o poema não me procures atrás das portas do livro Trinado para a Noite que Avança.
* Poema do livro Um Denso Azul Silêncio.