O fracasso como gesto de resistência

“Tentar de novo, fracassar de novo, fracassar melhor”
– Samuel Beckett
Vivemos num tempo que venera métricas: produtividade, rentabilidade, eficácia. O êxito tornou-se uma religião sem liturgia, mas com templos ubíquos — das corporações às redes sociais. Quem não cumpre os rituais carrega uma suspeita: a de não ser suficiente. Contra esta tirania do triunfo, o filósofo romeno Costica Bradatan ergue uma tese desconcertante: o fracasso não é acidente a evitar, mas experiência essencial, fenda reveladora e até clarividência.
Nascido na Roménia e atualmente professor na University of Queenslan, Bradatan tornou-se reconhecido como ensaísta que cruza filosofia, política e espiritualidade. Em The Art of Failure (A Arte de Fracassar), publicado em 2025 pela Editorial Anagrama, faz do fracasso um campo fértil de investigação, em vez de o entender como desvio ou falha técnica, examina-o como condição universal da existência humana. A mortalidade, afinal, é o maior dos nossos inescapáveis desastres partilhados. A partir dessa premissa, o livro percorre figuras históricas e literárias que souberam falhar de modo radical, deixando-nos na sua ruína uma espécie de claridade.
O fracasso como experiência filosófica
Na leitura de Bradatan, fracassar não é um erro de cálculo, mas um gesto de desvelo, um encontro com o limite. Falhar é tocar a nudez da condição humana: o corpo que definha, a palavra que não alcança o que deseja, o destino que não se cumpre. Só quem fracassa, afirma o autor, pode realmente conhecer-se.
A figura de Sócrates surge como exemplo inaugural. Ao aceitar a morte em nome da coerência com a sua filosofia, o ateniense transforma o fracasso — a condenação injusta — em vitória paradoxal. A cicuta não o destrói: permanece como paradigma do pensador que faz da derrota o seu êxito mais radical. Neste gesto, Bradatan descobre a origem de uma tradição em que a grandeza se encontra precisamente no precipício da queda.
Figuras do fracasso
Outro nome central é o de Simone Weil, pensadora e mística francesa que levou ao extremo a ligação entre corpo e pensamento. Weil sabia que pensar exigia esgotar-se, expor-se ao risco de insubsistência. O seu corpo frágil e a sua recusa em separar vida e filosofia tornaram-na exemplo de alguém que fez do fracasso — físico, social, até político — uma via de conhecimento. Bradatan lê nela uma lição extrema, só falhando diante da realidade se abre a possibilidade de outra verdade.
Para Bradatan, fracassar não é um erro de cálculo,
mas um gesto de desvelo, um encontro com o limite.
A galeria de fracassados ilustres inclui Kierkegaard, para quem a existência é sempre paradoxo irresolúvel. O filósofo dinamarquês fracassa porque nunca encontra conciliação entre fé e razão, mas é desse abismo que nasce a sua obra. Também Beckett ocupa lugar inevitável neste inventário. A célebre fórmula — “tentar de novo, fracassar de novo, fracassar melhor” — transforma o fracasso em estética, método e destino. Para Bradatan, a literatura de Beckett é prova de que a linguagem só se torna verdadeira quando assume a sua própria insuficiência.
E paira ainda a sombra de Cioran, conterrâneo de Bradatan, cuja escrita se constrói como celebração irónica do malogro. Cada aforismo do autor de Breviário de Decomposição é um colapso miniatural, uma epifania arrancada ao vazio. Estes pensadores não representam o reverso trágico da história, mas antes uma contra-história: a dos que mostram como o fracasso pode ser método de investigação e fôlego de claridade.
Fracasso e contemporaneidade
O mérito maior do livro de Bradatan é o de não circunscrever o fracasso à galeria de figuras ilustres. Ele interroga a nossa própria época, uma sociedade saturada por discursos de desempenho, onde cada gesto deve provar utilidade. Se não publicamos, não existimos; se não somos promovidos, falhámos; se não acumulamos “likes”, não valemos. A lógica produtivista infiltra-se em todos os interstícios da vida, convertendo até o lazer em performance.
Contra esta ideologia, o fracasso aparece como gesto refratário, recusa de servidão às métricas. Bradatan sugere que falhar pode ser uma forma de desobediência espiritual. Não publicar, não competir, não ascender: cada uma destas negativas pode ser exercício de liberdade. Falhar é, nesse sentido, libertar-se: romper a engrenagem do cálculo e aceitar o limite como espaço de criação.
O fracasso, lembra o filósofo, não é apenas resultado negativo, mas experiência universal, todos morremos, todos caímos, todos nos desiludimos. A cultura dominante esforça-se por camuflar essa evidência, mas o fracasso insiste — teimoso, irredutível. Assumi-lo é reconciliar-se com o real, cultivar uma disciplina da vulnerabilidade.
A claridade da falha
Ao longo do livro, Bradatan insiste numa verdade desconfortável: somos feitos para falhar. A arte está em transformar essa condição em linguagem, pensamento, criação. Em Sócrates, Weil, Kierkegaard, Beckett ou Cioran, o fracasso não é resignação, mas via de revelação.
Numa época em que tudo se mede, tudo se calcula, tudo se compara, fracassar pode ser o último gesto de liberdade. É uma arte rara, uma claridade que se abre na fenda. E talvez seja nesse interstício — quando deixamos cair o fardo do êxito — que se abre o espaço mais fecundo para pensar, escrever, existir.
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Tiago Alves Costa é escritor, ensaísta e professor associado na BAU – Centro Universitário de Artes e Design de Barcelona. É editor da revista Quiasmo e investiga os cruzamentos entre literatura, filosofia e contemporaneidade.