“Tudo o que é torrencial me pertence”: 9 poemas de Ronaldo Costa Fernandes

Na poesia de Ronaldo Costa Fernandes, o mundo revela-se por fraturas. O corpo, a memória, o tempo e o silêncio comparecem como matérias em combustão, expostos à guilhotina do instante e ao sopro do indizível. Os seus versos erguem-se entre o humano e o cósmico, entre a cicatriz da história e a vertigem íntima, como se a palavra fosse sempre exercício de resistência. Nestes dez poemas, encontramos uma voz que sabe transfigurar o real em revelação — e faz da poesia um espaço de assombro e lucidez.
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Libertinagem
A memória roda gigante
e faz girar a roda da fortuna do antigo
como um búzio que murmureja
o mar de concha.
O trançado da revolta
borda o pano de fundo
enquanto as cortes do povo
criam a revolução francesa
da libertinagem do pensamento.
O tempero da carne cozinha
o temperamento do espírito,
as especiarias dos males
salgam o pouco unguento
das secreções.
A guilhotina das pálpebras
desce para recusar o regime de terror
das crianças da pátria nesse instante.
*
Osso
O que gosto do osso
é seu recato.
Somente em situação
de alarde surge um grito branco.
Ele diminui em pé,
cansado da moleza da carne
– a carne gosta de alaridos –
enquanto a máquina do corpo
funciona a plena deglutição.
Os amores,
que aparentemente
pertencem à carne,
encontram no osso a sua dor.
O coração,
para ser uma boa máquina,
deveria funcionar a pleno osso.
Um homem desgostoso
é uma anomalia:
está tomado por cotovelos e suas dores.
Os ossos se avolumam na noite;
em certas ocasiões,
viver é um caso de fratura exposta.
*
O relógio de ponto de Deus
Os ponteiros
do relógio de Deus
estão pendurados
na cabeça dos homens,
onde não há pulso ou parede.
O ponteiro das horas
marca o mal
que é mais duradouro,
enquanto o dos minutos,
a fugacidade do bem.
O relógio
– o tal relógio de Deus –
marca também as frases da lua:
o quarto minguante sem verbo amar,
o full moon dos amantes em superlativo,
a descrente estima dos desvalidos
e os crescentes cupins que roem as orações.
A vida tem vários corredores.
Difícil é saber
quando estamos no corredor da morte.
*
Chuva
A garoa continua
a molhar a inconstância
dos meus passos.
Em algum momento,
esqueci do malogro
das chuvas de verão:
uma febre de águas turvas e ligeiras.
Chega uma idade
em que as inundações
são temporais:
pertencem à juventude das opiniões.
Chegou a hora
de a chuva fina dos nervos
causar danos como um fio
desencapado na tomada dos anos.
Meu cúmulo nimbo
é a permanente tempestade
dos sentidos que nublam
o raio da insensatez.
Tudo o que é torrencial
me pertence.
*
Cosmos
Acordo às vezes
no mundo da lua:
há em mim
o cometa da felicidade.
Me banho com a alegria
que é uma forma de retirar
a poeira de estrelas
dos meus pesares noturnos.
É raro esse momento,
no mais das vezes o que existe
é a relatividade da vida
que orbita em torno do cotidiano.
E o Ser, esse sujeito
cheio de constelações de vícios,
é engolido pelo buraco
onde gravita a existência.
*
Quaresmeira
Meus braços
– que são meus galhos –
se cristam no dia a dia
que é a via-crúcis de todos nós.
Meus dedos
– que são as flores da minha mão –
embrutecem no calvário das esperas.
Tudo o que tinha de religioso
se despetalou
no martírio de existir sem poesia.
A poesia me dá
Deus e o Diabo
mas não a terra prometida.
Voltarei a vicejar
ano que vem
quando a quaresmeira
do meu corpo
me florir de desejos
de ressurreição.
*
A maldição do branco
Estamos
parados numa estação de frio
e de descampados secos,
a vista escorre
pelo capacho marrom
feito de terra,
matéria esquiva e
o desassossego das janelas
cujo vapor não deixa que se veja
os campos errantes lá fora.
Sobreviveremos
às chegadas imprevistas,
a estação não dará
o canto miúdo das flores,
o tapete salsaparrilha do outono,
nem o forno dos suores da juventude
e muito menos
o cinzento livro de ponto
com suas entradas e saídas
da maldição do branco.
*
Rupestre
Minha imprudência
é feita de cavernas
onde caço animais
nas paredes do desejo.
Ando rude e encovado
nos desenhos primitivos
da minha memória
quase extinta
pelos anos de escuridão.
No meu corpo
tão áspero e rupestre
há uma pré-história de mim.
*
As mãos e as linhas tortas
Minhas mãos
são mais secas
que um deserto de carcaças.
Com elas,
afago a estreiteza
do silêncio.
Meus dedos
não cabem na luva
um número menor
da frieza das negativas.
O dedo acusa
a vida que desabitei.
De minhas mãos
desabam cascatas de vazio
onde me banho de impurezas.
As palmas querem
segurar o vazio
que não é a glória
mas a tentativa
de agarrar o futuro.
O futuro gosta
da prestidigitação
e não passa de um charlatão
que logo, no presente,
se percebe o logro da mágica.
Meus dedos,
pinças de carne,
catam os milhos
dos comprimidos.
E a pílula da felicidade
– que é cor-de-rosa –
acolchoa as paredes do real.
Minha impressão
é que cada palavra
é uma digital
que deixo no poema
que minha mão me escreve
por linhas tortas.
Às vezes perco a mão
para contar nos dedos
os desvios do caminho
do poema que se recusa a ser escrito.
Por outro lado,
sei que cozinho de mão cheia
as horas espalmadas
em que encontro
o pasmo do instante.
A unha da razão
e a carne do desejo
fazem parte do mesmo
dedo acusador do destino.
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Ronaldo Costa Fernandes (São Luís, 1952) é poeta, romancista e ensaísta. Publicou mais de vinte livros em diferentes géneros, entre eles os volumes de poesia Estrangeiro (1997), A máquina das mãos (2009), Memória dos porcos (2012), Matadouro de vozes (2018) e A invenção do passado (2022). A sua obra recebeu distinções como o Prémio Casa de las Américas, o Prémio da Associação Paulista dos Críticos de Arte e o Prémio ABL de Poesia. Ocupa a cadeira 31 da Academia Maranhense de Letras e reside atualmente em Barcelona.