5 poemas do livro “Noturnos” de Rui Sobral

mil oitocentos e vinte e cinco, dez e dezanove
tinha cinco anos e os dias sabiam a ferro
chaves, as mãos dele – abriam-me sem força
e os outros vieram depois, cães a farejar carne
vestiam-se de noite entravam-me pelos ossos
ladrões em procissão
o meu corpo era casa escancarada
língua, faca curva mordida para dentro
o tempo a mastigar-me cru
um cheiro um peso um tempo estagnado
e lençóis, mapas de sangue seco
geografias da culpa que eu lavava em silêncio
depois, cresci: o espelho pariu um estranho
e na sombra de cada homem, um lobo a rir-se
e na boca de cada lobo, os dentes do meu primo
*
trinta e cinco mil seiscentos e noventa e quatro, dez minutos
quando eu morrer, o mundo não vai parar
a árvore continuará a mexer-se
o tempo mastigará o meu nome sem hesitação
os meus filhos vão crescer sem a minha sombra
quem lhes suturará as frases deixadas a sangrar
quem lhes segurará o peito quando o medo se
ajoelhar à cabeceira
o vazio não tem braços, o nada não embala
e eu estarei debaixo da terra – mudo
com a boca cheia de raízes de terra e de formigas
a ouvir os seus passos a tornarem-se ecos
a tornarem-se memória
*
doze mil seiscentos e dezanove, uma e um quarto
procuro deus
nas rachas do teto
nas lâmpadas mortas
nos relógios parados
onde o tempo a ele se sufoca
nas mãos vazias das estátuas que não rezam mais
nos berros de mães em luto nas campas dos filhos
nos espelhos rachados a refletir ausências
no chão de madeira que range como lamentos
no cinzeiro de um cigarro apagado à pressa
nos olhos das fotografias dos meus pais mortos
na mão trémula de quem segura o copo de água à
noite
no choro sufocado de quem desconhece razões
*
sesame
as horas são pedras empilhadas no peito
autênticas muralhas sempre em construção
obras de fina areia em praias tempestuosas
verga-se o corpo para a terra como um ramo partido
mas já não reconhece a alma o chão onde pousa
perdido no limbo das promessas vazias
gritos ressoam sem nunca tocarem margem
a cada passo repete-se a dor. mantra mudo.
pássaro ferido bate contra o vidro uma e outra vez
e o ar é pesado e vive colado aos pulmões
como se todas as pessoas viessem habitar-me
esmagando-me consumindo-me apagando-me
e eu aqui, à espera do que nunca chega
ou de um horizonte que se afasta a cada doença
*
purple
há uma voz dentro de nós que pergunta:
para quê
respondemos com um silêncio feito de montanhas
um corpo que respira lembranças
o vazio tem forma de peso tem cheiro
é pedra molhada trancada no peito
dedos frios que nos estrangulam
e às vezes o vazio é tudo o que nos resta
ele tem voz línguas feitas de louça
palavras cortadas antes de serem ditas
às vezes a dele é a nossa
uma faca oculta que nos espanca por dentro
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Rui Sobral (n. Santo Tirso), é poeta e escritor. É licenciado em Línguas Aplicadas, mestre em Sociologia pela Universidade do Minho e doutorando em História. Além de noturnos (2025), é autor de A nu (poesia, 2014), tendo participado em diversas antologias e obras coletivas, em Portugal e no estrangeiro.