Algumas obras não se limitam a recuperar narrativas históricas esquecidas — interrogam criticamente as estruturas sociais e institucionais que permitiram o seu silenciamento. É o caso de As tolas que non o eran (Editorial Galaxia, 2025), de Carmen V. Valiña, investigadora galega nas áreas de género e saúde mental. A autora analisa o contexto do Manicómio de Conxo (1885–1936), onde diversas mulheres foram institucionalizadas não por motivos clínicos, mas por desvio às normas sociais da época: camponesas, economicamente desfavorecidas, analfabetas ou consideradas insubmissas, perfis estigmatizados por um sistema patriarcal que via nestas mulheres um elemento de desordem social.
Como já assinalou Michel Foucault, a loucura configura-se muitas vezes como uma construção política, um dispositivo de controlo social e disciplinar. As mulheres institucionalizadas sob o rótulo de “desvio mental” encontravam-se na confluência mais frágil das lógicas de exclusão: género, classe social e território. A autora, através de um trabalho rigoroso de investigação arquivística e de uma escuta ética dos fragmentos disponíveis, restitui voz a estas mulheres, uma voz que sobreviveu nas margens: em cartas, em gestos, nos silêncios que atravessaram o tempo.
Talvez por isso faça tanto sentido lembrar Freud, quando afirmou que “as vozes que não escutamos retornam como sintomas”. Este livro pode ser lido justamente como isso: um sintoma de uma memória histórica reprimida, mas também como um gesto de reparação simbólica. A rebeldia de Amalia, a carta de Maria ou a tristeza de Elena constituem, ainda hoje, um apelo à escuta activa. Um murmúrio persistente que interpela o presente: “Estou aqui e quero que me escutes.”
As tolas que non o eran não é apenas uma obra de resgate histórico, mas um contributo relevante para a crítica das instituições psiquiátricas e para a compreensão interseccional da exclusão social. Carmen V. Valiña devolve centralidade a vidas apagadas pelos dispositivos de poder, inscrevendo-as num espaço de memória onde o género, a classe e a saúde mental deixam de ser meras categorias diagnósticas para se tornarem chaves de leitura política e histórica. Este livro interpela-nos enquanto leitores e cidadãos, convocando-nos a uma escuta atenta do passado, não como um eco distante, mas como uma urgência ética do presente.
Sobre a autora:
Carmen V. Valiña é investigadora especializada em estudos de género e diretora da plataforma www.perifericas.es, uma escola de feminismos alternativos de referência no ensino online sobre esta temática em Espanha desde 2016. Além disso, leciona como docente na Universidade Europeia Miguel de Cervantes (UEMC).
Nos últimos anos, a sua investigação tem-se centrado na relação entre saúde mental e controlo da dissidência feminina, com especial enfoque na análise dos arquivos do manicómio de Conxo, em Santiago de Compostela.
Mais informação sobre a obra neste link: https://astolasquenonoeran.carrd.co/#