Há muito que escuto esta imagem dentro de mim I Ana Paula Jardim

Há muito que escuto esta imagem dentro de mim. Surge de forma inconveniente. Sem que a chame. Deixa-me nua e indefesa na ponta de uma falésia. Instável. Os pés desesperados resvalam na terra. Tento não cair para dentro de um oceano que se abre furioso. Como um Adamastor. Da minha garganta soltam-se uns urros magníficos que não são som. Antes um sonar que quebra todos os espelhos. Onde já não estou. O meu reflexo é uma imensa sombra sobre as águas. No horizonte aparece, planando, um monstro alado e magnífico. Grita ao longe qualquer coisa que não compreendo. Estendo o braço por instinto e ajoelho-me. Um medo profundo revolve-me as estranhas. Digo uma oração baixinho ao Deus desconhecido. Olho de lado à medida que se aproxima. É uma águia. Magnífica como uma besta. Que os predadores são sempre atraentes. E a beleza uma maldição que os homens amam. Não sei porquê. Baixo a cabeça como uma presa que aceita o seu destino. À espera que poise na minha pele e me esmigalhe os ossos. Com as suas garras. Sinto o bater das penas abertas e compridas a travar o seu instinto veloz, com a elegância cruel que todos os predadores têm. Estranhamente, aterra dentro de mim como se me pertencesse. Suave. Guarda as asas. Olha as minhas lágrimas e obedece-me.
Ali, onde a terra se acaba e o mar começa, com um vestido coral já desmaiado e com a bainha rota. Pelo uso e sujo de desilusão. Um casaco descaído nos ombros e que não protege do vento. O cabelo cheio de sal e os pés dentro de uns chinelos que se embrulham na poeira, fixo a vastidão de um oceano que se estende inteiro à minha frente. Erguendo-se ao fundo, na linha do horizonte, uma embarcação gigante navega solitária. Sem velas, nem tripulação. Leva na proa o Cavaleiro da Triste Figura, de escudo e lança e um corpo franzino. Grita como um pobre velho enlouquecido invocando todos os monstros marinhos e Adamastores. Nos seus olhos pequenos e encovados de navegador nascem moinhos esquecidos e um livro que escreve nas falésias e que ninguém lê. Antes de desaparecer e ser engolido nas águas deste Cabo, olha uma última vez para o Promontório da Lua onde me encontro, erguida como uma estátua. Desgrenhada. E diz, salta minha Dulcineia, minha personagem inventada, neste abismo azul, se fores capaz. Junta-te a esta horda de eleitos esquecidos pelo mundo. Salta no vazio de coisa nenhuma. Salta minha Dulcineia que és tão pobre como nós.
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Ana Paula Jardim nasceu em Coimbra. Licenciou-se em Filosofia e desempenhou funções no âmbito da promoção da leitura e da gestão de eventos na Divisão de Bibliotecas da Câmara Municipal de Oeiras. Integrou, desde finais de 2016 até Maio de 2023, a equipa do Templo da Poesia, do Parque dos Poetas, na área de programação e mediação cultural. No âmbito das Comemorações dos vinte anos do Parque dos Poetas (1ª fase), foi a responsável pela organização e seleção de poemas da Antologia 20 anos 20 autores, com coordenação editorial de Jorge Reis Sá e integrada na coleção Livros de Oeiras. Venceu o Prémio Glória de Sant’Anna em 2021 com o seu primeiro livro de poesia, Roupão Azul, com a chancela da Guerra e Paz Editores. Publicou, em maio de 2022, na mesma editora, o seu segundo livro de poesia intitulado Enfermaria, que veio a integrar a lista dos oito finalistas da 11ª edição do Prémio Glória de Sant’Anna 2024. Rua do Arsenal, publicado pela Guerra e Paz Editores, em Maio do presente ano, é o seu mais recente livro de poesia. Tem participado em diversas Revistas Literárias. Desde junho de 2023 faz parte da equipa da Divisão de Cultura e Artes, do Município de Oeiras.
Créditos da foto da autora: Josefina Melo