Manual de Sobrevivência para Dias Partidos I 10 Poemas Inéditos de Sara F. Costa

Dizem que escrevo como um homem
Dizem que escrevo como um homem.
Como um músculo que morde,
como um punho fechado em sílabas.
Como um homem.
Dizem que escrevo como um homem,
mas esquecem-se de perguntar
se a frase tem útero,
se a metáfora menstrua,
se a vírgula rasga a garganta
antes de nascer.
Dizem que escrevo como um homem.
Mas eu escrevo como um corpo,
como um dente cravado na folha,
como um berro que não se desculpa.
Escrevo como um trovão sem género.
E que se foda o pronome.
*
Tratado Breve sobre a Ossatura Invisível
As superfícies não suportam.
Fendem-se.
Sob a epiderme:
o ensaio mineral de uma arte marcial sem nome,
onde cada hematoma insinua um sistema de astros oblíquos
a tatear a forma do osso.
Não há gesto.
Há deslocação.
Um leve transbordo entre a intenção e o vértice.
E o corpo, anterior ao corpo,
presta-se à liturgia do impacto
com uma candura táctil,
quase vegetal.
Como se o punho soubesse
— sem consciência,
sem promessa —
a gramática tectónica do silêncio.
Não se trata de força,
mas de uma estética do colapso.
O corpo cai
na direção exata da sua vocação.
Há escolas de sombra
onde o peso se educa em espirais.
A rapariga —
não nomeada,
não narrável —
inscreve-se no atrito.
Pele contra ar.
Tendão contra axioma.
Ninguém vê.
Mas os hematomas sonham.
E os sonhos não pertencem ao visível.
*
QUIS SABER QUEM SOU
Nasci depois do desfile.
Não fui filha da revolução —
fui a ressaca.
Vivo num país com janelas sem vista.
A democracia escorre pelas paredes,
confunde-se com a humidade e o mofo.
E eu,
com as mãos sujas de poemas
e os olhos rasgados de becos,
aprendi que ser livre
é ter de explicar por que se sangra
num país que já foi salvo.
Trabalho, pago, sorrio nos lugares certos.
Sei que abril me observa do teto e sussurra:
Sem Deus, sem patrão, sem marido.
Vejo Zeca nas paredes do metro.
Ele pisca-me o olho
e desaparece entre anúncios de crédito.
E eu continuo:
um cravo invisível no bolso,
país inteiro por arrumar na cabeça.
Podia ser Abril.
Mas também podia ser só sexta-feira.
A diferença é nenhuma
quando se escolhe, todos os dias,
não obedecer.
*
Fratura
a minha casa arde
(todos veem)
tu —
tu aplaudes.
o fumo entra nos pulmões deles
eles sufocam.
tu respiras.
acusas-me.
o espelho parte-se
não nos teus olhos,
nos meus.
eles sabem.
sabem.
sabem —
que o amor é faca.
que o filho que dei à luz
me partiu por dentro.
tu —
tu ergues a espada.
não para me defender.
para me cortar.
choras a tua liberdade.
invejas a minha prisão.
a minha vida, um livro aberto.
tu escreves na margem:
“culpada.”
a minha dor —
simples.
pura.
tu resolves-me a sangue-frio.
como é possível?
como é possível?
até os mortos nas ruas
sabem que amar é morrer um pouco.
tu —
tu finges que vives.
apontas-me o dedo.
não mártir.
não sobrevivente.
vilã.
só vilã.
só ruína.
só mulher.
*
equinócio do verbo
o poema:
astro imóvel na espiral do sangue.
a 21 de março,
as musas respiram por fissuras da língua.
não há palavra —
há lume a recompor o silêncio.
a poesia desce:
líquida, mineral,
como se o tempo se ajoelhasse
diante da sílaba.
*
poema com artifício e combustão
ele disse: li-te,
como quem atravessa um campo minado
com um ramo de oliveira na mão errada.
o olhar trazia cordas finas —
não para amarrar,
mas para medir onde cede o silêncio.
quis entrar pela parte do cérebro
que ainda cheira a incêndio antigo.
apontou frases como setas dobradas,
queria que eu tombasse em nome do brilho.
mas eu já fui lida por espectros mais hábeis.
tenho nervos que reconhecem o truque
antes da boca o pronunciar.
sou uma casa de janelas fechadas por dentro,
um animal que sonha com cidades em chamas.
não me alcança quem acende
só para ver se a luz dói.
aqui só entra quem chega
sem mapa,
sem máscara,
sem bisturi na voz.
*
catedral ao nível do chão
o quarto arde em silêncio:
os lençóis são a pele de um animal antigo
que sonha contigo à deriva, em Braga.
lá fora,
a montanha sustém a catedral
como um osso exposto à eternidade —
mas o sagrado
estava quando o teu filho te lançou um ramo de vento,
e tu disseste
“olha, amor, estamos vivos.”
nesse instante,
um deus pequeníssimo pousou-te nos cílios,
feito de terra e brinquedo e saliva,
e reconheceu-te:
a mãe que abortou a culpa.
a mulher que escreveu o fogo em vez do evangelho.
o altar está abaixo da torre,
na memória da areia.
teu corpo sabe.
teu corpo lembra.
há uma árvore invisível a crescer entre o teu peito e o vidro
e cada vez que a olhas,
uma nova palavra
nasce sem boca.
*
25 de Abril é carne viva
rasgou-se a parede com as unhas.
não foi flor —
foi unha,
foi nervo.
o sangue seco nas bocas
ainda sabe a quartel.
diziam:
calem-se.
baixem a saia.
cortem a rádio.
rezem ao retrato.
morram de mansinho.
mas alguém trepou o medo.
alguém cuspiu no chão do patrão.
alguém gritou tão alto
que a palavra liberdade
abriu as coxas da madrugada.
e não foi bonito.
teve cheiro de suor e de pólvora,
teve homens com medo a chorar
no meio da multidão,
teve mulheres com cravos no útero
a parir o país outra vez.
os tanques eram mães
com dentes cerrados.
a cidade, um útero sujo
cheio de gente a nascer
fora do prazo.
não me venham com discursos.
abril não é palco —
é ferida aberta,
é língua mordida,
é orgasmo interrompido,
é a sujidade que fica nas mãos
de quem tocou o impossível.
*
Abril: Ressonância para Corpo Inacabado
matéria em queda sem margem
sutura no osso antes do gesto
milímetro onde o peso é insurreição latente
sombra em torção,
não músculo — mas gramática de silêncio curvo
nada caminha
há um rumor em suspensão entre vértebras
onde o corpo não é corpo
mas área de tacto órfico,
mnemónica vegetal
antes do cravo:
a fricção
o invisível a tactear forma nos hematomas
a revolução como superfície inversa
como flor recalcada na articulação do punho
e quando Abril:
não chega —
desce.
incide na exatidão não dita
na dobra do joelho sobre o chão sem nome
na pele que ensaia territórios
em segredo
não há marcha
há sopro
há torso litúrgico
há o país a reconfigurar-se em espiral de ar
quem ouve, saberá:
o chão não cede
abre.
e da queda nasce
a arquitetura incandescente da hora.
*
fragmento com mulher a arder lentamente
há uma cadeira no meio da casa
onde nunca ninguém se senta.
as janelas, bocas em febre,
escancaram a exaustão das paredes.
um brinquedo partido no chão
como um coração antigo —
sempre no lugar errado.
as mãos foram feitas para levantar casas,
mas esta constrói dias,
um por um, como se erguesse catedrais com fósforos.
arde devagar —
com incêndios por dentro.
o filho dorme, e ela torna-se ausência:
espectro de mulher numa cadeira sem nome,
de ossos calmos e olhos com pregos.
há um peso que não é físico:
uma força invertida que a puxa para dentro do próprio corpo –
como se fosse possível cair para dentro.
dele, a pior ferida:
essa ciência de apagar o outro como se fosse um erro de cálculo.
Lembranças: animais cegos a tropeçar dentro do crânio.
todas as perguntas têm dentes.
mas há um instante —
fresta mínima na maquinaria dos dias —
em que a música irrompe,
e durante três minutos e quarenta e dois segundos
ela é puro ritmo sem carne:
sístole, diástole,
voz anterior à linguagem,
matéria sonora a incendiar o silêncio.
a seguir escreve:
palavras-rasura, palavras-víscera.
e nessa escrita há um princípio de milagre.
não redenção —
mas qualquer coisa que não seja morte.
porque mesmo agora,
deitada no chão da casa como se fosse chão também,
a mulher ainda ferve,
a mulher ainda fabrica sentido com as cinzas,
a mulher ainda vê —
e quem vê, resiste.
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