“A memória cultural é um espaço de resistência contra o esquecimento imposto pela velocidade.”
— Remedios Zafra
Nas aulas que leciono na BAU, noto algo que inquieta e, ao mesmo tempo, dá esperança: muitos alunos mostram um cansaço precoce diante da aceleração a que estão expostos. Cresceram dentro da lógica da hiperconexão, da autoimagem projectada, da vigilância afectiva. São sensíveis à tecnologia, mas procuram — mesmo sem saber ainda como — mecanismos para se libertar do seu jugo. Querem tempo. Querem linguagem. Querem sentido.
Talvez por isso, falar-lhes de literatura — e em particular de textos clássicos — tenha ganho uma nova ressonância. Há, nesses encontros, uma escuta atenta, uma espécie de desejo de travão. Como se, entre o ruído dos feeds e a ansiedade de desempenho, intuíam que outra respiração é possível.
E é precisamente aí que os clássicos se tornam urgentes.
Vivemos num tempo marcado pela aceleração do quotidiano e pela fragmentação da experiência, o que nos conduz a uma sensação difusa de exaustão e desorientação. As redes sociais impuseram um regime de exposição constante, de auto-performance e de vigilância emocional, onde a identidade se reconstrói a cada instante, num ciclo incessante de consumo e abandono.
Neste cenário, regressar aos grandes textos fundadores da cultura ocidental pode parecer, à primeira vista, um gesto anacrónico. No entanto, é precisamente nos clássicos que encontramos figuras simbólicas capazes de iluminar os dilemas do presente, personagens que, vindas de tempos remotos, continuam a ressoar com uma estranha familiaridade.
Hamlet e Ulisses — dois nomes que condensam imaginários profundos — oferecem modos arquetípicos de estar no mundo: um movido pela hesitação e pela introspecção; o outro, pela astúcia e pelo movimento. Ambos atravessados pela inquietação, pela dor e pelo desejo de compreender. Ambos lançados em territórios instáveis, em tempos de crise.
Ulisses é aquele que se perde para poder regressar. A sua errância não é apenas geográfica, mas também simbólica: cada ilha, cada provação, representa uma etapa de metamorfose. Na era digital, onde a errância se tornou um scroll infinito, Ulisses encarna o desejo de resistência através da narrativa. Como observa a filósofa Remedios Zafra, o sujeito contemporâneo vive em deslocamento constante, entre a criação de si e a sua dissolução.
Revisitar Hamlet e a Odisseia não é,
pois, um gesto de nostalgia,
mas um acto de resistência imaginativa
Hamlet, por sua vez, é o herói paralisado pelo excesso de consciência. A sua dúvida não é apenas filosófica, é também performativa. Encena, desconfia, observa, hesita. Na cultura da hipervisibilidade, Hamlet funciona como um espelho inquietante. Slavoj Žižek, ao analisar a pulsão de morte na sociedade contemporânea, vê nele o prenúncio da subjetividade moderna dividida entre o desejo de agir e a impossibilidade de o fazer. É neste entrelaçar de tempos e figuras que Hamlet e Ulisses se tornam guias possíveis. Um observa e pensa; o outro desloca-se e transforma. Entre o espectro e o regresso, entre o teatro da consciência e a epopeia do retorno, estas duas figuras continuam a oferecer um mapa simbólico para sobreviver ao excesso de presente.
Revisitar Hamlet e a Odisseia não é, pois, um gesto de nostalgia, mas um acto de resistência imaginativa. Estes textos mostram-nos que as perguntas mais urgentes — quem somos, o que fazemos aqui, como agir num mundo em ruínas — já foram colocadas com radicalidade por autores de outras épocas. A literatura, ao contrário do que se pensa, não é um refúgio, mas um sismógrafo. E Hamlet e Ulisses, com as suas contradições e coragem, continuam a falar-nos no meio do ruído, sobretudo àqueles que, entre a exaustão e a curiosidade, começam a pressentir que outra forma de escuta é possível.
Nota final do autor:
Italo Calvino escreveu que “um clássico é um livro que nunca termina aquilo que tem para dizer”. Regressar a Hamlet e à Odisseia, no turbilhão da era digital, não é apenas uma escolha estética ou erudita é uma tentativa de escuta. Escutar o que ainda vibra no que já foi dito. Escutar o que permanece. Os clássicos, longe de serem vestígios, funcionam como aparelhos de medida, captam as fissuras do tempo, ampliam os silêncios do presente. Se a velocidade fragmenta, os clássicos costuram. Se a dispersão confunde, eles concentram. E é talvez nessa lentidão que reside a sua maior subversão: obrigam-nos a parar.
Ler Hamlet ou Ulisses hoje é aceitar que o que nos inquieta não é novo, apenas se actualiza. E talvez seja essa a dádiva maior dos clássicos: não respondem por nós, mas oferecem-nos uma linguagem onde ainda é possível perguntar.
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Tiago Alves Costa é escritor, ensaísta e professor associado na BAU – Centro Universitário de Artes e Design de Barcelona. É editor da revista Quiasmo e investiga os cruzamentos entre literatura, filosofia e contemporaneidade.