A palavra viajada I Esther Andradi
Quer se queira, quer não, a vida é uma viagem com partida e destino. Aos vinte anos, comecei a minha primeira viagem como mochileira. A mochila era tão pesada que, se me sentasse, custava-me horrores levantar-me. A palavra “sentada” parece-se muito com “sedentária”, o oposto de “nómada”. E, no entanto, creio que ambos os conceitos, mais do que se interferirem, se complementam. Foi assim que aprendi que, para viajar de forma menos sedentária, na vida devemos levar pouca bagagem material.
Nessa viagem como mochileira, conheci um homem de baixa estatura que conduzia um enorme camião. Para ele, a viagem era a própria vida. O importante não era o ponto de chegada, mas o caminho. Foi uma grande lição, sem dúvida, embora na altura, ansiosa como era, suspirasse em cada paragem, pensando, como as crianças: “Quando chegamos?”. Mais tarde, sempre que me sentia impaciente, começava a caminhar. Há alguns anos comecei a caminhar metodicamente e, ao contrário da história daquele conto, continuo no mesmo lugar.
Fisicamente, quero dizer, porque há viagens e viagens. A viagem das palavras e das coisas. A viagem das comidas. O idioma do caminho. Todos são tópicos possíveis de um mundo em movimento que nos interpela, nos observa e nos questiona. Se estamos dispostos a escutá-lo.
Hoje estou de viagem no país da minha infância e juventude. E, por momentos, parece que habito um sonho. Estou no mesmo cenário onde nasci: a infância e a escola, a minha mãe e as suas milanesas. E a cidade onde fui para a universidade, onde tive dezassete anos, interroga-me. Perguntam-me os amigos de então: “Onde estivemos? De onde viemos nós, que fomos?”. Transformados e eloquentes, cabisbaixos ou perplexos, levados e trazidos por uma espiral do tempo, como dizem os físicos, alguns de nós ainda seguramos na mão o sonho dos nossos vinte anos como um balão de festa infantil.
Nas paredes está escrito: “Sonhar acordado: isso é a realidade”. E o país em movimento fala de direções, de estratégias de caminho, de sapatos mais ou menos flexíveis. A seta foi disparada e não há volta, como gosta de dizer o meu amigo marinheiro… Não há volta?
Há viagens e viagens. Viagens que duram um dia e outras, uma vida inteira. Viagens turísticas e permanentes. A viagem turística é a aventura em cápsulas para o sedentarismo. Um pouco de nomadismo faz sempre bem. O sedentarismo trouxe consigo todas as regras de segurança necessárias para conter o movimento em espaços que se imaginam eternos e imutáveis. Nada é mais desestabilizador que o movimento. Então compram-se seguros. Segura-se tudo. Até a língua, que aspira a ser única, simples, elementar. Um código de barras para compreender e comunicar-se com o mundo.
Nos anos 40, o designer italiano Ernesto Nathan Rogers escreveu que bastaria contemplar um objeto para descrever a sociedade que o produziu. Hoje em dia, com a globalização de tudo, não é fácil dizer que sociedade desenhou este ou aquele objeto, porque tudo parece estar em interdependência. As línguas também. Mantêm-se no tempo, umas às outras, num equilíbrio entre protecionismo e liberalismo, mas o que as define não é a regulação feita pelas academias, mas sim a persistência dos que as falam em mantê-las vivas e levá-las consigo a toda a parte. Ainda assim, nos últimos anos, o número de línguas faladas no planeta tem diminuído consideravelmente.
Segundo o físico inglês Freeman Dyson, a extinção gradual de algumas línguas no mundo faria desaparecer também os neurónios da espécie humana, que ao longo dos anos se formaram para as interpretar, estudar e falar. Ao contrário do que se poderia pensar, menos línguas só seriam úteis para a burocracia, mas tornariam a comunicação entre as pessoas cada vez mais elementar. Este princípio é tão certeiro porque é difícil imaginar que o complexo possa simplificar as coisas. Ou seja, a complexidade é o que nos levou à evolução, e não o contrário.
Portanto, a língua só se salva sendo nómada. Viajada. Mais do que as pessoas que a falam, mais do que os destinos dos seus falantes, mais do que os estudos dos seus investigadores. O viajante, muitas vezes sem o saber, vai em busca destas alegorias e ficções, destes argumentos e circunstâncias, abrindo caminho na selva para assinar um padrão. Um conhecimento. Uma distorção.
Os alemães inventaram recentemente a palavra Migrationshintergrund — que significa “com fundo migratório” — para classificar a origem das pessoas neste mundo em movimento. Definição exigente por onde quer que se olhe, porque é quase impossível a existência de alguém que não tenha um fundo migratório. Alguém que não tenha um nómada, um viajante nos seus genes. Porque desde Lucy, que há milhares de anos foi africana, até agora, as pessoas não têm feito outra coisa senão mover-se. Mover-se e tentar fixar-se. Insistir em levar consigo o que é próprio e protegê-lo do que é alheio. Do impróprio?
O que se leva numa viagem? A mala interna traz idioma e sabores, histórias e consolos, remédios e rituais familiares para compor a música do caminho. Nem sempre o que trazemos na bagagem se adapta, começando pela comida, que, segundo o ditado popular, viaja mal. Porque a comida, como as pessoas e as palavras, também se modifica. A viagem das palavras permite que elas também se impregnem do mundo por onde caminhamos. Os registos familiares falam de perdas e desgraças, dramas de adaptação e tragédias de desenraizamento. Tudo se transforma no embate do carinho, do olhar, da guerra, da fúria ou do encontro amoroso com o outro, e há um enorme medo dessa transformação, porque o que se transforma deixa de nos pertencer como o conhecíamos, assim como nós também já não somos os mesmos depois de uma viagem que começou na infância e que termina no fim do percurso. E temos medo. Medo de perder. Medo de ganhar?
Seja como for, neste caminho cheio de altos e baixos, de retornos indesejados, de sonhos escondidos, de comidas temperadas com o amor pelo que perdemos, alimenta-se a manada espiritual da qual procedemos. Como espécie, não como indivíduos. E aí reside a nossa desolação, o nosso desequilíbrio diário, a nossa melancolia de séculos concentrada num sonho, numa situação diferente. A consagração da nossa mudança. Essa mudança que nos transtorna e desequilibra. Então inventam-se palavras para a definir, sem pensar que talvez o que marca este movimento é a indefinição permanente.
Quando tudo está perdido, resta a língua materna. Hannah Arendt insiste nisso. E ela sabia do que falava, mergulhada na língua franca do inglês, os seus conceitos não conseguiam encontrar-se. Trata-se, então, da língua em viagem. De transportar o que se tem. Como conviver com isso na terra dos outros? Como usar as palavras conhecidas para definir o que não se conhece? Aquilo para o qual não há palavras? Assim aconteceu com a escrita emigrada ao longo dos séculos, vasculhando outras línguas até transformar as palavras na própria. Como Ovídio, que continuou a cantar para Roma e os seus algozes em latim, perdido entre os bárbaros. Como Alexander von Humboldt, que percebeu em alemão e formulou em francês a sua experiência nas colónias espanholas.
O tio Eusebio sofria da doença das viagens. Depois de algum tempo, independentemente das circunstâncias, ele sentia um formigueiro persistente nos pés que só aliviava caminhando. Melhor dizendo, correndo, e então partia. Conta a família que a mãe do tio Eusebio estava grávida quando se mudaram de um campo para outro, e que então sentiu um formigueiro na barriga e o parto adiantou-se. O tio Eusebio nasceu assim, com a cruz da viagem sobre o seu destino. Só saindo era capaz de regressar, de comunicar-se, de existir.
Este parente distante, porque andava sempre por lugares desconhecidos, mas que não perdia nenhuma das peregrinações, na altura numerosas, foi o mito da minha infância. Também eu, obrigada a partir na juventude, depois de algum tempo, e agora já sem motivo aparente, sinto a compulsão de abandonar o lugar onde estou para me perder noutro, noutras circunstâncias, noutros mundos. Só por um tempo, prometo a mim mesma. Mas até agora, continuo sem cumprir a promessa. Quando estiver de regresso, sabê-lo-ei. Entretanto, sigo andando. Como me disse aquele homem que conheci enquanto mochileira: o prazer está no caminho.
Revista Humboldt N.º 159 Passagens, Bonn/Berlim 2013
Tradução para português por Tiago Alves Costa.
♦
Esther Andradi nasceu em Ataliva, Argentina, e em 1975 emigrou para o Peru, onde publicou o seu primeiro livro sobre a situação das mulheres. Em 1983, radicou-se em Berlim Ocidental, em 1995 mudou-se para Buenos Aires e, desde 2003, vive e escreve entre ambas as cidades. Publicou crónicas, ensaios, poesia, microficção, contos e romances. Os seus relatos integram numerosas antologias em diferentes países e línguas. As suas crónicas sobre cultura, memória e migração são publicadas em diversos meios de comunicação da América, Espanha e Alemanha. Traduziu para espanhol a poesia da poeta negra alemã May Ayim. Editou a antologia Vivir en otra lengua, pioneira na construção de um espaço para a literatura latino-americana escrita fora das fronteiras dos países de origem. A sua obra foi traduzida para várias línguas, incluindo recentemente para grego. Os ensaios reunidos em La lengua de viaje completam a sua trilogia berlinense, juntamente com o romance Berlín es un cuento e o reportório literário Mi Berlín. Crónicas de una ciudad mutante.
(C) revista Desbandada
Este texto ensaio faz parte do livro “La lengua de viaje” (Buena Vista Editora, 2023).