“A literatura não existe para nos poupar. Existe para nos mostrar quem somos, no íntimo e sem filtro.”
— Karl Ove Knausgård
“Precisamos de livros que nos afectem como um desastre”
— Franz Kafka
Há livros que, como lâminas afiadas, atravessam o espírito e nos transformam de tal forma que nunca mais somos os mesmos. Não é isso, afinal, o que procuramos como leitores? São obras raras, que não só nos inquietam, mas também nos forçam a reconsiderar o mundo, sem os filtros de conveniência que habitualmente aplicamos. A singularidade dessas obras reside não apenas no impacto que causam, mas na forma quase hipnótica com que desmontam a nossa visão da realidade, levando-nos a questionar as nossas verdades mais íntimas. Entre Moscas, do escritor e poeta brasileiro Everardo Norões, é um desses exemplares raros. Vai muito além de uma simples colectânea de contos: é um labirinto narrativo, uma reflexão densa e visceral sobre a condição humana, onde o incómodo se eleva a uma expressão artística sublime. Cada página abre uma nova janela para os abismos da existência, explorando com elegância os grandes temas da humanidade — medo, solidão, incerteza, esperança, desejo, coragem, angústia, redenção — e conduz-nos a um mergulho profundo na nossa própria condição.
Logo nos primeiros contos, como O exercício do asco e Entre moscas, Everardo não poupa o leitor a um sobressalto inicial. Em O exercício do asco, o asco não é apenas físico, mas também moral, numa crítica feroz às elites que expõe a arrogância e hipocrisia daqueles que se consideram inalcançáveis. Já em Entre moscas, o insecto é subvertido, transformando-se em herói, enquanto a “grande mosca”, representada pela televisão, simboliza a decadência que permeia o quotidiano. Neste jogo de contrastes, Everardo revela a sua mestria ao extrair beleza e significado daquilo que, à primeira vista, poderia parecer trivial.
Contudo, o inesperado na obra não surge de forma gratuita: há uma beleza latente e persistente que percorre toda a sua prosa. Afinal, a verdadeira missão do escritor é esta: poetizar o mundo. O olhar de Everardo é o de um poeta, capaz de desvendar as relações ocultas entre as coisas e encontrar beleza onde menos se espera. Nos seus contos, o belo não é uma faísca passageira, mas uma luz contínua, que brilha discretamente nas entrelinhas. Esta não é uma beleza que tranquiliza, mas que desafia, convidando o leitor a encontrar harmonia no caos e a perceber o sublime onde outros veriam apenas ruína. A mosca, que figura na capa da edição original pela editora Confraria do Vento, inicialmente provoca e desorienta, mas logo se revela como o primeiro indício de uma inquietação profunda — um espelho do incómodo existencial que atravessa a obra.
A complexidade de Entre Moscas transcende o insólito ou as metáforas óbvias. Ao longo dos seus 25 contos, o autor tece uma densa rede de referências literárias, oferecendo ao leitor uma experiência rica de significados, que só se revela totalmente a quem está disposto a escavar as camadas mais profundas. Tal como Borges, com quem é frequentemente comparado, Everardo exige uma atitude activa por parte do leitor, uma mente curiosa que se lança na busca por sentidos ocultos. As suas histórias são povoadas de alusões e citações que, quando desvendadas, amplificam significativamente a experiência de leitura. A sua literatura não se entrega de forma imediata; cabe ao leitor conquistá-la, e nesse processo reside o verdadeiro prazer de ler o autor.
É neste contexto que a recente publicação de Entre Moscas pela editora lisboeta Poets & Dragons ganha relevância. Ao trazer a obra para um novo público, esta edição reafirma a capacidade de Entre Moscas de ultrapassar fronteiras, não apenas físicas, mas também culturais e literárias. O facto de a obra ser agora acolhida em Portugal sublinha a universalidade dos seus temas e a ressonância que as suas inquietações e reflexões provocam em diferentes contextos. Este reconhecimento não só reforça a importância da obra de Everardo, já consagrado com o Prémio Portugal Telecom de Literatura em 2014, como também destaca o poder transformador da sua escrita, capaz de ressoar profundamente nas questões que marcam o nosso tempo.
Assim, nos contos finais, como Um certo Padre Gomes e Um certo Goês, a prosa de Everardo ultrapassa os limites da narrativa convencional, mergulhando nos domínios da poesia. O autor parece testar continuamente os confins da linguagem, moldando cada frase com a precisão de um artesão. Esta busca por novas formas de expressão não apenas enriquece a obra, mas também ressoa com a inquietação que permeia Entre Moscas, proporcionando uma experiência literária que desafia as normas e evoca ponderações arrebatadoras.
Neste universo literário, não encontramos conforto nem soluções triviais. Somos instigados a confrontar a realidade sem ilusões, forçando-nos a questionar as nossas convicções mais enraizadas. Everardo convida-nos a reflectir sobre o absurdo da vida e a descobrir uma beleza inesperada no caos, transcendendo o simples ao sublime. A sua prosa, ao mesmo tempo incisiva e profundamente reflexiva, transforma cada página numa revelação, onde o incómodo se converte numa arte de questionamento. É uma leitura que nos desafia como leitores e, simultaneamente, nos reconstrói, destinada àqueles que têm a coragem de abraçar a perplexidade e aventurar-se pelos territórios mais sombrios da existência.
Nos dias de hoje, marcados por incertezas e mudanças de paradigma, a obra revela uma actualidade desconcertante. Num mundo onde o caos parece ter-se tornado a nova ordem, Entre Moscas ergue-se como uma bússola para os inquietos, guiando-nos pelas paisagens da incerteza e do desassossego, oferecendo-nos, se não respostas, pelo menos as perguntas certas para navegar nestes tempos de transição. Para aqueles que ousam aventurar-se neste labirinto da condição humana, Entre Moscas é uma viagem sem retorno, onde cada linha nos conduz a uma nova compreensão da vida — essa mesma que, muitas vezes, passa ao nosso lado sem a percebermos —, convidando-nos a encarar o mundo com um olhar renovado.