“A literatura não existe para nos poupar. Existe para nos mostrar quem somos, no íntimo e sem filtro.“
— Karl Ove Knausgård
“Precisamos de livros que nos afectem como um desastre”
— Franz Kafka
Há obras que irrompem no nosso campo sensível como lâminas de luz oblíqua, insinuando uma brecha no real e movendo-nos, quase em segredo, do centro que julgávamos imutável. Procuramos talvez isto na leitura, uma perturbação subtil, porém irrevogável, que refine a percepção e nos restitua ao mundo com outra tessitura interior. São obras escassas, não pela estridência, mas pela maneira como instauram um ritmo íntimo, uma vibração subterrânea que desarruma suavemente o nosso olhar. Entre Moscas, de Everardo Norões, pertence a essa estirpe insólita. Não se limita a oferecer contos, engendra um verdadeiro labirinto de revelações discretas, onde a inquietação se transmuta em claridade e cada narrativa se converte numa pequena cartografia do humano. A sua força está no modo como convoca, com elegância e contenção, os territórios frágeis da existência — a angústia, o assombro, o desejo, a hesitação — e os devolve ao leitor numa prosa simultaneamente incisiva e rarefeita, como quem acende um lume secreto no interior da própria sombra.

“Entre Moscas” de Everardo Norões. Uma edição da Poets and Dragons Society (2024).
Logo nos primeiros contos, como “O exercício do asco” e “Entre moscas”, Everardo não poupa o leitor a um sobressalto inicial. Em “O exercício do asco”, o asco não é apenas físico, mas moral, numa crítica feroz às elites que expõe a arrogância e a dissimulação daqueles que se consideram inalcançáveis. Já em “Entre moscas”, o insecto é subvertido, transfigurado em herói, enquanto a “grande mosca”, representada pela televisão, encarna a decadência que permeia o quotidiano. Neste jogo de contrastes, Everardo revela a sua mestria ao extrair significado e beleza daquilo que, à primeira vista, poderia parecer trivial.
Contudo, o inesperado na obra não surge de forma gratuita. Há uma beleza latente e persistente que percorre toda a sua prosa. Afinal, a verdadeira missão do escritor é esta: poetizar o mundo. O olhar de Everardo é o de um poeta, capaz de desvendar as relações ocultas entre as coisas e encontrar claridade onde menos se espera. Nos seus contos, o belo não é uma faísca fugidia, mas uma luz contínua que brilha nas entrelinhas. Não se trata de uma beleza apaziguante, mas interrogativa, que desafia o leitor a reconhecer harmonia no caos e a perceber o sublime onde muitos veriam apenas ruína. A mosca — que figura na capa da edição original da Confraria do Vento —, inicialmente provocadora e desconcertante, depressa se revela como o primeiro sinal de uma inquietação profunda, um espelho do incómodo existencial que atravessa a obra.
A complexidade de Entre Moscas transcende o insólito e as metáforas evidentes. Ao longo dos seus vinte e cinco contos, o autor tece uma rede densa de referências literárias, oferecendo ao leitor uma experiência de múltiplas camadas, que apenas se revela plenamente a quem estiver disposto a escavar a profundidade. Tal como Borges, com quem tantas vezes é comparado, Everardo solicita uma atitude activa, um leitor disposto a perscrutar sentidos ocultos. As suas histórias são povoadas de alusões, citações e subtis correspondências que, quando desvendadas, amplificam a leitura. A sua literatura não se entrega de imediato; cabe ao leitor conquistá-la. É nesse esforço, nesse exercício de escuta, que reside a recompensa maior.
Everardo Norões escreve como quem cartografa
o humano pelas suas zonas mais frágeis.
É nesse contexto que a nova publicação de Entre Moscas pela editora lisboeta Poets & Dragons adquire especial relevância. Ao trazer a obra para um novo horizonte de leitores, esta edição reafirma a vocação transfronteiriça do livro, a sua capacidade de ressoar para além das delimitações geográficas e culturais. O facto de ser agora acolhida em Portugal sublinha a universalidade dos temas que Everardo explora e a forma como a sua inquietação literária dialoga com as fraturas do presente. Este reconhecimento reforça a importância da sua obra — já distinguida com o Prémio Portugal Telecom de Literatura em 2014 — e confirma o poder transformador da sua escrita, capaz de tocar o essencial das nossas perplexidades contemporâneas.
Nos contos finais, como “Um certo Padre Gomes” e “Um certo Goês”, a prosa de Everardo ultrapassa os limites da narrativa convencional, insinuando-se nos territórios da poesia. O autor parece testar continuamente os confins da linguagem, moldando cada frase com a minúcia de um artesão. Esta busca por novas tessituras expressivas não apenas amplia a obra, mas ressoa com a inquietação que a percorre, oferecendo ao leitor uma experiência literária que desafia fronteiras e convoca um pensamento mais vasto.
Neste universo, não encontramos conforto nem soluções fáceis. Encontramos antes um convite à lucidez, à coragem de ver sem véus. Everardo impele-nos a confrontar a realidade na sua estranheza essencial, levando-nos a descobrir uma beleza inesperada no caos, uma ordem secreta no tumulto. A sua prosa, simultaneamente cortante e meditativa, transforma cada página numa revelação, onde o incómodo se converte numa ética de questionamento. Trata-se de uma leitura destinada aos que aceitam a perplexidade como forma de conhecimento e que se dispõem a atravessar os lugares sombrios onde a condição humana se revela com mais nitidez.
A obra assume uma actualidade desconcertante, sobretudo num cenário marcado por incertezas e reconfigurações abruptas da contemporaneidade. Num mundo onde o caos se tornou regra e a ideia de ordem um simulacro, Entre Moscas ergue-se como uma bússola oblíqua, conduzindo-nos pelas geografias da dúvida e do desassossego. Não oferece respostas, mas algo mais raro: as perguntas necessárias para atravessar estes tempos de transição. Para quem ousa aventurar-se no labirinto do humano, o livro revela-se uma viagem sem retorno, onde cada página abre um rasgo de compreensão sobre a vida, essa força que tantas vezes nos roça e escapa, convidando-nos a reinventar o olhar com que habitamos o mundo.








