5 poemas do livro “Impacto” de Luís Filipe Sarmento
1.
Dai-me o resultado das inocências – enquanto me respiro,
olho-me na totalidade do espelho – se é que ele foi catalogado
nos arquivos científicos das etnias.
Dizem que não, como se não entendessem que a evidência
não guarda nos seus cartórios cardápios de sensações
efémeras. A nobreza catalogada no Ocidente
não reconhece a inocência como um valor sensato e visível.
Vejamos os seus prodígios –
uma vez que a inocência é um bem imaterial de pouca monta
– o que acrescentam à subtracção da sua natureza de magos
baratos; a baça linguagem do fingimento; o saque imoderado
do sangue que se transacciona no comércio de valores
acrescentados à gula da miséria;
(a inexistência de um Livro é reveladora)
pactos & pactos de regime para um ponto de vista
agregador, talvez o lado bélico do terror, dos ineptos
para a avaliação das inocências.
Investindo na festa da ignorância, vendem deuses feirantes,
tribunos de acusações aos libertários, mas
também da necessidade de crimes proclamados ao abandono.
Os que observam são tentados ao lance do uníssono Não
e a algazarra não é terreno propício à mudança justa
quando na feira se transacciona objectos sem cotação
para que o mercado se eternize numa arena de encontros
incandescentes e saturantes de vazios manipulados
como se prescreveu na fábrica digital. O regresso
ao poema contesta a negação da evidência. Há balas negras
nos rostos daqueles que queriam a letra inocente
da existência. Nos templos, o ouro escorre como uma promessa
de leite a tempo do milagre dos eleitos.
Os megafones em chamas agitam-se no meio do esfacelamento
e a notícia rejubila valorizando a publicidade.
Onde o Livro?
*
2.
Onde o Livro? Ou o Rascunho dessa mão tão rápida
– onde o texto, leito aberto a uma destemida corrida?
No lado obscuro da pedra, as nascentes, todas as nascentes,
concentradas no miolo da lama, o pão imediato
a tantas mãos estendidas. Mãos
já sem a face do que outrora foram pequenos caprichos
de bons acidentes no embate casual dos corpos:
uma esmeralda diamantina ou um lápis-lazúli tão bruto
como um fragmento da paisagem do avô antigo. Mãos,
muitas mãos ao entardecer da madrugada, mãos
sem o passado nem portas para abrir no futuro.
Mãos de corpos com olhos e nos olhos a nitidez das muralhas
onde se aninham os estrondos.
Que importam as raízes românticas? Que importam
os nomes com destino? Aqui, nada conta, nada importa.
O voto foi uma fera da linguagem que a todos feriu
sob a magnífica festa da democracia, do seu sonho,
da sua constituição, da liberdade projectada nos jardins
e, agora, não. Os descendentes dos vampiros chocados
nos ventres de aluguer de não-mães e mães-não,
encontradas com mãos, e só com mãos, como olhos
de água, saíram dos seus esconderijos-túmulos
para se exibirem com a bandeira de uma nova possibilidade
de ditadura. Eles não, dizem aqueles que os esqueceram.
A inteligência democrática claudicou na sua rara ocorrência
e permitiu que, entre si, se transbordasse de colaboracionistas
que inventaram a oportunidade de querer existir
sem os que existiam em solidariedade.
Hoje, as democracias do ocidente dispensam todos
os que pensam, escancarando os portões da liberdade
aos cônsules do morticínio anunciado em ficções
apoucadas pelos sacerdotes do saber manchado.
Já não há grutas para um planeta inteiro se cobrir
das chuvas ácidas. As constituições democráticas são
pasta de papel. Onde a habitação digna a que temos direito?
Onde o templo da longevidade?
Pensam pouco os que muito extorquiram. E a maioria
dos que julga pensar não tem a mínima ideia
do que seja a mais minúscula reflexão sobre a banalização
do mal. Há mãos, muitas mãos, cada vez mais mãos
apontadas ao mistério cósmico de um céu sem deuses.
*
3.
Um céu sem deuses.
Falemos dos sinais incrustados na pele das tempestades
e do olvido. A insubmissão, talvez um lugar secreto
da dignidade, a sua estrutura, a sustentabilidade
da Liberdade. O punho, os dedos fechados, e no peito
a mãe celebrada na orquestra cardíaca que a sublima
na sua bomba de sangue. O jarro de alabastro,
tão amarelo como a bandeira solar em tempos de paz,
rejubila com as suas raízes ocultas naquela casa
encontrada há dois séculos no desenho anónimo de um avô.
Falemos de sinais. Como aquela boca ao longe
que sai do cartaz publicitário e diz quando a noite,
a língua solta na saliva oculta no enigma do desejo.
O fogo, também o fogo, submetido aos instantes dos poros,
sacraliza a vertical linha do afecto insaciável
e os olhos, ali tão em cima dos rostos, injectados
de futuro, assinando o protocolo irrecusável
no registo de um verso efémero e passageiro do infinito transe.
*
4.
Do infinito transe. Nesta penumbra,
os acólitos preparam a liturgia
de mais uma viagem ao consulado psicadélico,
ao confronto com os monumentos invisíveis da mente.
Cumprido os rituais pela alteração de estados de consciência,
provavelmente o silêncio não se fará sentir
enquanto as bocas procuram o infinito de si na origem
do parto. Colecção de memórias na fronteira dos abismos
e um braço de pele tostada equilibra a sensação
de injustiça. As penumbras não se discutem ao anoitecer,
com o rito cumprido, o relaxamento dos ossos,
o enervamento dos músculos e os repelões que dão
identidade ao prazer e à pergunta. Lugar onde?
Nos esconderijos abertos aos ácidos, a luz
é uma fonte inesgotável de primados idealistas;
parte do verso vestido e maquilhado
para que o grotesco se transmute em arte abstracta,
o meu lençol ao acordar ainda recolhe no seu fundo
boreal as estrelas gasosas que borbulham
intoxicadas do belo libertado à prisão de sinapses falhadas.
Agora o poema cuja leitura me pertence
enquanto pássaro resgatado aos túmulos do esquecimento.
*
5.
Onde o esquecimento?
Ausente do sentido conservador da atenção imposta
pela negação constante de inteligência
entreguei-me ao colóquio aromático das flores
– esbanjamento de tempo e lugar quando o florescimento
se descerra à infinita surpresa dos matizes,
aos meus sentidos intermitentemente necessários ao gosto –
e ao flamejante bric-à-brac das tonalidades
como se apontassem um caminho ideológico
nesta arena de inevitáveis associações entre a besta
e os grunhos primatas de gravata e salto alto.
Sorrio ao desassossego quando
na relva húmida observo com ironia quatro livros
abertos à brisa e neles inscritos
o conhecimento da liberdade, da resistência, do amor.
♦
Luís Filipe Sarmento nasceu em Lisboa, a 12 de Outubro de 1956. Formou-se em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Ao longo da sua carreira, destacou-se como jornalista, escritor, tradutor e realizador de televisão e cinema. A sua obra literária, reconhecida internacionalmente, foi traduzida para diversas línguas, incluindo inglês, espanhol, francês, italiano, grego, árabe, mandarim, japonês, romeno, macedónio, croata, sérvio, albanês, turco, sueco e russo. É membro de várias organizações literárias e culturais de prestígio, como o P.E.N. Club e a Associação Portuguesa de Escritores. Entre 1994 e 1995, foi Coordenador Internacional da Organization Mondial de Poétes. Integrou o International Committee of the World Congress of Poets e presidiu à Associação Ibero-Americana de Escritores entre 1999 e 2000. Atualmente, é coordenador para Portugal do World Poetry Movement e membro da Comissão Coordenadora Internacional desta organização. Além disso, é fundador e membro da comissão coordenadora dos Poets of the Planet (POP). A sua participação em mais de 100 festivais, congressos e feiras internacionais reforça o seu papel ativo na cena literária mundial. Ao longo da sua carreira, foi agraciado com vários prémios internacionais de renome. Em 2021, recebeu o Prémio Internacional Balsa de Piedra, o Prémio Internacional Águila de Oro, o Prémio Literário Ulysses e o Prémio Internacional César Vallejo. No ano seguinte, em 2022, foi distinguido novamente com o Prémio Internacional César Vallejo pelo livro “Beat”. Em 2023, foi galardoado com o Prémio de Literatura Clarice Lispector.
Estes cinco poemas integram o livro “Impacto”, que será publicado em 2025.