Das asas do wi-fi à música de Lenine | Everardo Norões
Liga o computador.
Acessa o código para “dialogar” com o mais novo assistente virtual inteligente. Busca uma conversa em torno de literatura. Do outro lado, um humanoide está pronto a responder qualquer indagação.
É um ensaio gratuito. Aproveita para se certificar se a nova parafernália poderá ajudá-lo nas tarefas de redação ou revisão. Ou mesmo em trabalhos de ghost writer, o “fantasma escritor”. Aquele que redige textos encomendados por gente que nunca conseguiria, de outro jeito, um lugar ao sol no chamado “mundo das letras”.
Aciona o “redator virtual”. Opta pelo idioma português. Perseguido pela vaidade, digita a primeira pergunta:
— Qual sua opinião acerca do escritor X? Nas asas do wi-fi a resposta aterrissa célere:
— O romancista X é professor universitário, já recebeu diversos prêmios e honrarias por sua contribuição à literatura brasileira. Sua obra é uma leitura enriquecedora para todos aqueles que apreciam a poesia e a literatura. Sua poesia utiliza uma linguagem simples, direta, mas ao mesmo tempo poética e profunda, que convida a refletir sobre questões existenciais e sociais. Sua narrativa é marcada por uma profunda reflexão sobre a condição humana, a espiritualidade e a relação do homem com o Mundo.
Contente, sente-se elevado às galáxias.
Logo introduz uma segunda pergunta a propósito de um livro de sua autoria. Dois anos de publicado, comentado por amigos no Face. Texto revisado e impresso na editora de um ex-colega. Lembra as querelas entre eles em torno de formatos do livro ou da ilustração da capa. Clima agravado pelas divergências políticas em ano eleitoral.
Digita:
— Quem é o autor da obra As ramagens do silêncio?
Mal retira os dedos do teclado, surge a resposta:
— O conhecido livro As ramagens do silêncio foi escrito pelo romancista português Diógenes Carvalhosa. Publicado em 1938, trata-se de uma coletânea de narrativas que retratam a vida urbana e a cultura popular do Rio de Janeiro na década de 1930. A obra é considerada uma das mais importantes da literatura brasileira e apresenta uma linguagem inovadora e experimental, que rompe com os cânones da narrativa. Entre os seus livros mais conhecidos estão O afiado gume da noite e A sede dos gerânios. Em todos esses livros é possível perceber a sensibilidade e a profundidade do escritor, que consegue expressar com maestria as angústias e as esperanças do ser humano.
Estranha nunca ter lido qualquer alusão ao dito escritor, um certo Diógenes Carvalhosa, cujo livro tem o mesmo título do seu. Por via das dúvidas, consulta o Google. Inútil. Não existe qualquer referência ao tal “romancista português”.
Insiste:
— Tem certeza?
A resposta:
— Peço desculpas, cometi um erro anteriormente. Diógenes Carvalhosa não é português. Trata-se de um escritor, poeta e ensaísta brasileiro, nascido em Garanhuns, Pernambuco, em 1935. Ele é autor de diversas obras de cunho regional, a exemplo de No rastro do Leão do Norte. Ele também escreveu vários ensaios sobre literatura e religião, como os…
Irritado, desliga o computador. Tivesse obtido o êxito esperado com o tal assistente virtual sua vida poderia tornar-se mais fácil. Sobretudo nessa sua fase de vida, tendo de pagar prestações, inclusive a do computador de última geração que lhe custou os olhos da cara. Algo equivalente ao trabalho de revisão de cinco livros encomendados por autores semianalfabetos.
Exclama, baixinho:
— Mal completo 50 e “minha” obra, além de atribuída indevidamente a um desconhecido, é apresentada como tendo sido publicada há quase um século! Ou seja, vários anos antes de meu nascimento!
O tempo está chuvoso. A umidade acentua o cheiro de mofo naquele quitinete de primeiro andar. Uma pilha de livros jaz sobre a mesa de fórmica com manchas de café. Costuma valer-se de um deles quando precisa desafogar. O que sempre lhe deixa “posto em sossego” é uma velha antologia de contos de Machado de Assis. Costuma abri-la ao acaso. Em qualquer página do Mestre sabe que vai encontrar “a chama de um gênio”.
Logo se defronta com uma de suas leituras favoritas. Um conto em torno de um músico, um certo Mestre Romão. Personagem que costuma reger peças do famoso compositor José Maurício, na Igreja do Carmo, no Rio de Janeiro. Seu trabalho de maestro é sempre elogiado, mas sua grande aspiração é mesmo a de ser compositor. Ou, pelo menos, findar aquela partitura iniciada quando jovem, três dias após um casamento que havia durado tantos anos. Até havia pensado o título: Cantiga de esponsais. Mas, as tentativas haviam sido vãs. Nunca conseguiu findar o projeto musical
Velho, viúvo, doente, o maestro um dia pede ao criado para mudar o cravo de lugar. Vai empreender uma última tentativa como compositor. Repete as notas, insiste nas variações em torno de um determinado lá. Nada.
Deprimido, abandona o cravo e debruça-se à janela. Avista, numa casa do outro lado da rua, um casal de recém-casados se acariciando. De repente, escuta a jovem cantarolar uma melodia que lhe soa familiar. Apura o ouvido. Tomado de surpresa dá-se conta: é um trecho da peça sonhada por ele durante anos a fio…
No dia seguinte o maestro morre, infeliz.
Termina a leitura de Machado de Assis, cuja narrativa tem o mesmo título da peça inconclusa do mestre de música: Cantiga de esponsais. O escritor X levanta-se. Vai ao refrigerador, saca uma garrafa de cerveja. E, de repente, imagina-se uma espécie de reencarnação daquele Mestre Romão, personagem do conto.
É noite de sexta-feira, quando sempre costuma findar meio deprimido. Mesmo com a janela fechada a barulheira lá fora o impede de concentrar-se ou de escutar algum clássico que o acalme. Até havia feito apelo a amigos da prefeitura, recorrido à polícia… Acabou por desistir.
Resignado, esboça um sorriso ao escutar uma das poucas músicas de “seu tempo” fluindo através das frestas da janela.
— Uma música de Lenine!
Toma mais um gole de cerveja. Ergue o polegar.
E até cantarola, baixinho:
Eu sou mameluco, sou de Casa Forte.
Sou de Pernambuco, eu sou o Leão do Norte.