5 poemas do livro “Sala de Operações” de André Osório
Ressurreição
A porta fechada: trabalhas, no centro da mesa, o mundo.
Teus filhos, de fora, não podem entrar;
crescem para adornar seu medo com a adoração
e essa ausência primeira com a entrada no mesmo lugar
que os subtraiu, tirou dele.
Deus criou os seus súbditos; agarrados ao que conhecem,
às sombras de si, onde reportam o adversário,
na terra, no que ela concebe. Condenam, cá fora,
o estrangeiro quando são eles próprios turistas, expandindo
seu reino sem fim.
Recriam o corpo perdido, abandonando-se.
O país atado a um fado, num destino privado,
onde quem não se devolve em pranto gera, desenfreado,
seu estar sozinho. A caverna, eu sei,
orações de bicos-de-pé para espreitar dentro
o escritório – apagaste-te para ser como ele,
mas não és, cresceste numa caixa já embalada
para partir encomendado. Competitivismo de
servir e destruir, a necessidade de confiança
e falso querer de estabilidade aflora na pele a revolta.
Murmúrios de paz elevam o espírito à morte num símbolo,
o Senhor, agora morto, é Cristo, e o seu sangue
veneno em nosso corpo, original. Eva e Adão são suas duas mãos
buscando atenção – por fora, criam esperando o reconhecimento,
espiam por dentro o porquê de sua intocável derrota.
Por quem são responsáveis, gritam; despedem,
mitigam como neles o seu pai a possibilidade de existir,
retiram o espírito livre, o tempo, o dinheiro, alimentam rituais,
mitos, superstições, para, ordenados, ascenderem
e sustentarem a sua auto-repressão,
por indiferença ou crença de amor.
Unindo as palmas, são puros; as ruas limpas de poeiras,
a imagem cristalina perante o espelho que se penteia,
formalizando a apatia, entre os dentes, como quem
escova, toda a manhã, por harmonia.
Monumentos ofensos à memória, somos vítreos
a quem vem de fora; as casas expulsando inquilinos,
bancos juram crises, com lábios conservadores e inflação
ao peito, beijando-a todas as manhãs enquanto dividem o pão
pelo vizinho do lado num super-mercado esfomeado,
por culpa, ou, quem sabe, confessar e expurgar seu pecado,
greves e emprego mal pago, educação de números inventados
para a equação, importada, e afinal pessoas como conceitos
caem de barcos de migração, afogam-se nos chuveiros de prédios
antigos, nunca reparados, mas de valor em erupção,
dos choros secretos nas sombras das casas
abre-se o descampado, onde todo o mundo celebra
em face de quem realmente sofre – os seus rostos irreconhecíveis,
deitados nas ruas, reflectem-se nos espelhos do quarto,
escovas de cabelo e laca, e incenso, filhos negados
da sua vida emprestada, louvor ao sol, que os queimou
por um lugar mais perto da chama, olhos como boias
naufragando no imo da noite, encovados, ressuscitam
nos incêndios alastrados, pelos campos de trigo, de uva, de arroz,
abstinentes embriagados num inferno que, passivos, atearam.
Nem Platão, com suas formas, nem Aristóteles na sua cadeira, a sós,
vos salvarão, poetas metafísicos, nem a vocês,
adeptos da morte, escondidos na prótese de uma Tradição;
este mundo é, de facto, o vosso, mas não sem medida.
A verdade, di-lo aos accionistas, desmorona a mentira erigida.
*
Formas da Metafísica
I
«Contra as paredes da cidade,
encostados à nossa Tradição sem idade»,
ele repetia, ciciando ao soldado,
benzendo-se com o calor do dia,
pregando humildade e caridade.
O vento devolvia a seus ramos o segredo da vida.
Aos pares, eles caíam: um pé ante o outro,
amarrados ao amor divino; os braços, unidos,
simulando uma prece. Lembravam suas mulheres,
guardadas à boca das casas, a criança morta na rua,
o filho que gritava, entre os remendos do quarto,
por uma vida que terá jamais. Mas que vida?
Tal violência, tão subtil, interrompia estas suas vozes interiores.
A palavra tinha-os consumido.
Face ao altar, fitavam, de baixo, os feixes de luz –
e as pequenas moedas caindo de cada vez,
revolvendo, e a pele rugosa, revelando,
seus rostos volvidos para o chão
como um último pensamento cristalizado para os séculos.
Curioso, as crianças não estavam ali, entre vestes maternas,
naquele quadro. Só nelas pensava;
este sábado à tarde, escurecendo, num museu de Praga.
II
Também comem, eles, os adultos,
depois de um dia de trabalho como outro qualquer,
remidos com uma maçã de um cesto comunitário
passando em corredores, em canteiros
vazios, vozes subterradas; e o meu rosto cansado
torneando onde marca ainda ‘3min 22’,
da carne congelada, e massa fria no tupperware,
hidratos, proteína e depois
‘ah, pois, e de-pois, e de-pois’,
o mesmo sempre rotineiro aceno a um semblante de gravata
e fato, que prostra, insidiosamente, de trás do vidro,
a sua fome.
Vários anos num mesmo espaço
tinham-lhe concedido uma beleza desmesurada.
Acordava, sem despertador, atravessando a noite da estrada,
mudava os seus dois filhos, um beijo
de noite, repetido de manhã, uma chávena de café
bebida até meio, duas torradas, leite: talvez.
Compreendia a virtude pelo ponto de embraiagem,
guiado pela cadência das linhas cada vez mais próximas,
pelo que imaginava quebrar a lei – até que chegava.
O seu sorriso vincado passava cada um dos seus rostos.
Cada um, organicamente, sorria-lhe de volta.
Fragmentos latentes de uma felicidade que se dilata,
quotidianamente, sem uma palavra.
III
Nossas casas são galerias do que não fomos.
Biografia emoldurada entre as fotos de família, de amigos,
da genealogia construída entre os anos, ao cimo dos móveis.
Pratos velhos da avó materna que morrera por dentro
no centro de sua infância, brancos, quase azuis.
Alguns panos, rendas, um ramo guardado daquele velório.
Sim, aquele. Não se lembrava de sua cara já;
perdia-lhe o nome, por vezes, entre os dedos cansados.
A cada morte existe um velório, a cada velório uma espera.
Recordo-me de ti, sempre, sentado no sofá,
ladeado pelos móveis, passando pela programação da tarde
naquele ecrã minúsculo. Passavas muito tempo aí,
fora do quarto, fora do mundo. Era a avó
que trazia o leite, o peixe da praça,
o novelo com que ocupavas o tempo, a pele.
Mas a verdade é que era tua a casa, não dela;
os armários teus, a cama tua, o televisor teu.
Sabias que o casamento era a principal fonte de piedade.
Todas as noites ela dormia no quarto, tu, no âmago da sala,
vendo-lhe a distância.
É tarde, já; faz frio lá fora.
E todos os meus amigos lançaram uma festa
no Café Central.
*
Avenida da Igreja
A cidade é uma montra.
Cá fora, olhamos: de bibe,
o reflexo, fita em troco:
a morte é um guarda-nocturno.
Procuramos, entre moedas,
uma memória.
*
Sala de Operações
He was fleeting across frozen fields
Where behind rhymed barbed wire
The miserable souls of his friends
And enemies would remain.
CZESŁAW MIŁOSZ
Aqui está o meu corpo.
Aberto, exposto,
aqui está o meu corpo, pensou.
Pele, pêlos, sangue, nervos,
órgãos. Não seria tão desconfortável,
não fosse tão imensamente calculado.
É forma comum: baço, braços, pernas,
preocupações. Ainda assim, estar aqui, neste lugar,
perante os vossos olhos, vazio e frio, examinado,
não dá totalmente para cair em mim.
Era um médico, ele. Tirara o curso
na Universidade Nova, e, depois, especialidade
em cirurgia de transplante. Não o conhecia antes
disto, quero dizer, deste nosso encontro.
Era um homem nos seus trinta e cinco anos,
calvo, quase, com um ar ao de leve cansado,
talvez do turno de trabalho, das luvas de sílex
gastas, ou, tão só, de um hábito subtil e adquirido de o dissimular.
Cumpria todas as horas extra, era conhecido pelos seus milagres
com os pacientes. Uma noite, a mulher deixou-o.
As pinças suportavam as bordas, a pele
era arame farpado para aprazimento estético.
Sou um corpo vazio. Tenho, nas tuas mãos,
o coração desfeito. Por cima,
detrás do vidro, alguém vigia, atento ao ecrã.
Tira notas. Talvez alunos. Lembram-me –
porventura, não se apercebam –
de aulas de literatura que tive na juventude. Olhei-
as da janela. O transplante estava pronto,
letras, arranhadas, selavam o embuste.
Observas-me de frente, sem desviar o olhar?
De novo o meu coração bate por ti,
tu que me o tiraste. Repara: as paredes da cidade,
as estradas ocupadas de crianças em postos de rua,
o cipreste, a areia, o aniversário;
que, afinal, esta nossa existência virtual, esta
próxima preocupação como um olho subterrado, corolário,
bombeia, entre o plasma, o horror de nossa civilização?
Cortas-te na fuga. Sozinho, no quarto, a tua distância é minha.
Levantas a face, as palavras gastas. Ligaduras escorrem-te como luvas gentis.
*
Four Seasons
So that the actual progress of the sentence
can be watched, the Harrow is made
FRANZ KAFKA
«Sete da manhã; uma hora antes o pequeno-almoço.
Jornais dormem de fato em seus lençóis de cortina fechada,
desconfiados de que o ritmo, exterior, retomou a sua força
primeira, quando o mundo atravessa os corredores, em alvoroço,
e a culpa, incólume, volta com uma luz única no escuro, inteira.
Antes de se levantarem com ela, não davam sinal
de estar tudo diferente: os dias mais longos, o tempo
menos húmido, embora escondido o húmus no dorso de cal,
as vozes, com seus carrinhos de mão, atarefadas,
a pele em que se embrulham findos os vapores de um parto.
Pensariam que esse sossego, tão merecido, fora da família,
dos filhos e do emprego, lhes restituiria uma unidade final,
ou que os primeiros dias de juventude seriam, agora,
um desejo indistinto; não sei, tento compreender,
quem sou, onde estou, por quem me ergo de manhã
e me deito à noite. As paredes ressonam contra o reflexo,
o eco do brilho é constante – cortinas ondulam como um irmão afogado.
Suspeitariam que estou aqui, deste outro lado, para lhes tomar conta,
que bastaria esta maçaneta, este botão apertado,
para conceber uma distância tão grande, dor tão passiva?
Que lugar era este, tão além-tempo, tão imóvel?
Seria o primeiro a perturbar seu silêncio profundo.
O meu pé lasso, das várias horas de trabalho,
a semana perfeita sobre o músculo reclinada,
observando, distante, procedimentos que, afinal,
não assimilava, diziam, os corredores de sua consciência,
ter de transpor a fronteira do sono, acordar
depois do licor, do véu e das pedras de gelo,
dos ensaios recalcados para dúvidas que nunca
vieram, dos falsos casamentos, do falso olhar
piedoso pelo diverso, sob o outro prisma
das pálpebras, depois das horas, dos meses, dos anos,
depois do tempo, aqui, e agora, e sempre,
avanço com cautela, silencioso, eficaz, constante,
sobre os minutos de meus passos, a ária
perpétua da minha voz, do meu cansaço.
Sobe o sol, entra a alvorada tímida nos quartos.
E sei, a claridade é minha de novo, devolve-se em nova oportunidade,
os olhos cintilam como as letras omissas do mundo,
que voltam do escuro e do vento, dos quadros,
dos museus e das fotografias de um massacre
de outra data; eu não compreendia, nem eles,
que era o hábito a verdadeira face do sagrado,
ou assim me diziam quando pequeno – os deveres
para o bem comum, a graça universal,
o além, o outro lado, e o ouvido encostado,
a lâmina cristalina do machado (está no som o duplo da forma)
hesitante entre amor e morte, no entanto
sussurrante, afiada, cortante, como quem busca no passado
rigor de nova vida, assim menos compassada,
menos medida, menos entregue a qualquer vontade divina,
que se estende em murmúrio de mão fechada,
convoca o que não foi à boca do sono
de um futuro que não existiu, mãe casta
que participa do nascimento dos seus filhos no seu,
este passivo anseio por uma repetição, homens
acamados na noite insone, digo a mim mesmo:
são eles, sim, eles são a minha salvação.
Então abro a porta. As janelas. As persianas.
O mundo. E desapareço.
Sem rasto, sem morada; estou aqui a sós,
sim, comigo, a sós. Digam-me, em que cama me deito,
que voz me trespassa como um bastardo por criar,
soprando secreto, que areal se vê da sua própria margem
e que barco sulca com este sangue seco, suor, imagem, mar –
a treva resvala cansada pelas cortinas,
reflecte-se em volta dos dedos, anelar, líquida,
na contínua dor de acordar para o mesmo sonho,
a mesma inquietação, os mesmos lençóis pesados, o mesmo leito,
o mesmo amor desmedido e voragem inscrita,
a tua boca no meu peito, descoberta de um lugar
até há pouco inimaginável: o antigo aroma a pasto,
o porta-bagagens aberto no descampado, entre fungos e laranjeiras,
alguém a nosso lado que agarrar e, entre unhas, dizer sim ao medo,
à existência caótica do tempo; o piquenique de vespas
dilatava-se, agora, do outro lado do vidro,
enquanto uma mão de luz fende a sombra,
rastejando do seu corpo como uma larva, o pó no ar,
e como se, sem passaporte, o som de um forasteiro
atravessasse as suas mais secretas trincheiras,
deteve-se, rodou os pulsos, como lábios sobre a fronte
nua, a grande canícula do Verão, executante. Abro a porta:
sete da manhã; uma hora antes do pequeno-almoço.
Jornais dormem de fato em seus lençóis de cortina fechada,
desconfiados de que o ritmo, exterior, retomou sua força,
quando, em gritos embalados, partem para uma noite primeira,
onde eu, fólio vergado, como num velório, te cobro.
Serve-me uma bebida, agita este copo
de pedras, em que me inebrio e naufrago, levanta-me, compreende-me,
escuta o sangue no corpo marcado, paga-me.»
♦
André Osório, nasceu em Lisboa, em 1998. Fez mestrado em Teoria da Literatura na Universidade de Lisboa, sendo doutorando do mesmo curso. Tem poesia publicada em várias revistas literárias, nacionais e internacionais, e em antologias. É um dos co-fundadores e directores da revista Lote. Em 2020, publicou o seu primeiro livro de poesia Observação da Gravidade (Guerra e Paz), finalista do Prémio Literário Glória de Sant’Anna (2021) e semifinalista do Prémio Oceanos (2021). Em 2023 foi vencedor da Bolsa de Criação Literária da DGLAB, da qual resultou o seu segundo livro de poesia Sala de Operações (2024).