Pago hoje o tributo de uma inconfidência: a de ter revelado a um amigo e poeta o fascínio de um livro. O poeta e amigo, a quem devo este convite, é o professor José Rodrigues de Paiva. O livro, A criação do mundo. É mais do que um livro. É a saga de Miguel Torga, o escritor que, no século XX, encarnou, melhor do que ninguém, o destino de Portugal. Miguel Torga teve como primeiro nome Adolfo Correia da Rocha. Assim foi batizado na aldeia de São Martinho de Anta, no Trás-os-Montes, nordeste português, onde nasceu em 12 de agosto de 1907.
Trás-os-Montes, como escreveria mais tarde, era o Reino Maravilhoso. A definição com que abre a descrição de sua terra no livro Portugal oferece-nos a dimensão desse apego: “Fica no cimo de Portugal, como os ninhos fincados no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos. E quem namora ninhos cá de baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepar e atingir a crista do sonho, contempla a bem-aventurança”. A Miguel Torga não faltou a coragem para subir no mais íngreme, nem a inteligência para descobrir, a tempo, que aquele Reino, como toda a maravilha humana, tinha seus dias contados. Era menino impossível, dividido, como dizia, entre as brincadeiras, as caçadas e o inferno dos “verbos irregulares, das conjunções subordinativas, dos quebrados e das reduções”.
Uma infância que, segundo ele, “ia fugindo de suas palavras e de seus gestos, ou ninguém mais a queria”. O futuro escritor logo se deu conta de que, se permanecesse ali, seria um pobre rapaz como os outros, curvado à condenação da enxada. Estava diante do irremediável: a escolha entre o eito e a batina, ou cruzar o mar salgado, em busca do Brasil. Escolheu o Brasil. E embarcou no navio Arlanza, numa terceira classe, onde só havia, escreveu depois, “barafunda e lágrimas” e o cheiro de “desinfetante branco dos urinóis que ardia no nariz”. Tinha apenas 13 anos. Era um menino pobre de Trás-os-Montes. O Brasil do desembarque, conforme descreveu em A criação do mundo, “eram ilhas e morros, e casas, e barcos, e gente a acenar, e uma grande aflição dentro de mim”. À chegada, observou o alvoroço da cidade, as vitrines do Rio de Janeiro, as caras desconhecidas dos patrícios. Depois, os nomes dos lugares lidos das janelas do trem, e as serranias, rios e florestas de tal maneira que não cabiam dentro de seus olhos. Fazenda Ouro Preto, interior de Minas Gerais.
Miguel Torga tinha de romper a crônica familiar, igual à da maioria dos homens de Agarez, denominação mítica de sua aldeia natal, espécie de cosmos dentro do Cosmos. Era preciso superar a história ancestral de tantos portugueses, como a de seus avôs: um, carreiro, o outro, almocreve; eternamente pobres, como o pai. Por isso, Torga fugira dos lobos do Marão, do terrível jugo da Santa Igreja Católica, e tomara o rumo do desconhecido, cheio de mistérios e de medos, mas o único possível para o homem que se revelaria no seu próprio confiteor:
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E o das ternuras lúcidas e mansas.E de ser de qualquer modo
Andanças do mesmo todo. (…)
Aquelas suas horas, de fato, ofertaram-lhe o que de mais duro lhe podiam dar: o trabalho rigoroso nos cafezais de Minas, o despeito e o desprezo da mulher do tio que o acolhera e dele fizera seu segundo; todos os pesos do homem sobre os ombros do menino. Miguel Torga assim revelou aquela angústia de se ver sozinho no mundo: “O medo daquele Brasil assim noturno, abafadiço, irreal, com pios medonhos, sem qualquer luz a acenar ao longe”. Tinha apenas 13 anos. Era um menino pobre de Trás-os-Montes, debaixo do sol dos trópicos. Nu e sem luz.
Passou cinco anos em fazendas de café de Minas Gerais, naquele universo estranho, onde outros enigmas se insinuavam nos da religião na qual já não acreditava mais: o Geraldino, que se transformava em lobisomem; a Paulina, que virava mula-de-padre; a preta Inês, que encarnava o espírito do avô. Fez o aprendizado dos campos com o negro Juvenal, teve a visão de bichos que mais pareciam saídos de um livro de mistérios, escreveu as primeiras cartas de amor. Torga observava que naquela mescla de raças e de nomes, de crenças e desatinos, miséria e riqueza se irmanavam para dominar a Natureza. Mas, no fundo, sua própria natureza clamava pela volta à terra da qual fora subtraído e onde se encontrava o húmus capaz de fazer fermentar sua imaginação de escritor.
Miguel Torga, que ainda era Adolfo Correia da Rocha, sentia-se pronto para o caminho do regresso, durante o qual receberia a revelação, a bordo do navio Andes, que o levava de volta a Portugal. Foi logo após a morte de um patrício, atingido pela tuberculose, lançado ao mar, túmulo maior dos portugueses. Naquele momento, Miguel Torga descobriu o escritor Machado de Assis. Ou melhor, o Quincas Borba, livro que comprara antes do embarque. E enquanto o Rubião de Machado olhava a enseada, no seu Rio de Janeiro, Miguel Torga, a despedir-se, observava aquele mar em toda a sua fundura. Embora já afeito a outras leituras, é junto do Rubião a sonhar que ele vai descobrir como “os autores procuravam criar, através das personagens que punham em movimento, símbolos perenes de realidades quotidianas”. Nascia, então, entre o escritor Miguel Torga e o escritor Machado de Assis uma cumplicidade na forma de compreender a vida e a literatura, expressa na exclamação do personagem do mestre do Cosme Velho: “Que abismo que há entre o espírito e o coração!”. Naquele instante Adolfo Correia da Rocha, 18 anos, cara de homem curtida pelos trópicos, encarna Miguel Torga.
Pouco importa que só tenha adotado esse nome nove anos depois, na ocasião em que publicou o ensaio A terceira voz. Ao contrário dos soldados que voltaram perplexos da I Grande Guerra sem ter o que contar – conforme escreveu Walter Benjamin no seu importante ensaio O narrador –, Miguel Torga regressaria de sua viagem brasileira para se tornar o grande narrador de nossa pátria, a língua portuguesa. Não um contador de histórias quaisquer, mas daquelas que confirmam todas as virtudes narrativas do marinheiro ou do camponês, do artesão ou do médico, todos os arquétipos do narrador do filósofo de As passagens. Um narrador com aquela força de quem desce à própria fundura, conforme escreveu: “Persistente, incansável, reactivo e apaixonado, a combater desde criança com duas pedras apenas na fisga, o sim e o não, como uma força vital em movimento, capaz do melhor e do pior em doses transbordantes, sem contensão e sem manha”. E, mais adiante, a declaração: “A natureza negara-me o dom da conciliação. Antes mesmo de ler o Apocalipse já vomitava os mornos”. (…)Dotado desse caráter, adotaria sua aldeia mítica como seu universo de escritor. Sua sina era a de colocar o mais grande no mais pequeno. Aqui não cabe o superlativo corretamente posto pela gramática, por não poder expressar a medida daquele sentimento tão entranhadamente seu de ser português. Como Torga confessaria mais tarde, seria capaz de viver em qualquer lugar do mundo, na condição de trabalhador para ganhar o pão, como já o fizera. Nunca como escritor, pois lhe faltaria o dicionário da terra, a sintaxe da paisagem. Diz melhor o poema, intitulado Regresso, de 1973:
Quanto mais longe vou, mais perto fico
De ti, berço infeliz onde nasci.
Tudo o que tenho, o tenho aqui
Plantado.
O coração e os pés, e as horas que vivi,
Ainda não sei se livre ou condenado.
Berço infeliz! O reencontro com Portugal é constatação de desespero. Portugal não mudara. Nem a fortuna do tio, quando também retornou, fora capaz de lavar a lepra da pobreza que marcara tantas gerações daqueles confins de Trás-os-Montes. A regra, naquele tempo, quase não permitia exceção: se algum dos retornados, como seu tio, com o dinheiro auferido no Brasil, se imaginasse algum dia livre daquela mancha secular, logo depararia com a barreira de classe, que sufoca pela humilhação e pela arrogância e calha mais fundo do que a fome de pão. A nova realidade de Miguel Torga, como confessaria, era a de um cotidiano que o obrigava a aceitar nos outros uma indignidade de que ele próprio nunca seria capaz. Restava-lhe um antídoto: a pena cortante com que empregaria o verbo escrever e seus afins, em todas as suas impossíveis conjugações, para subjugar um real tão absurdo que precisava de poucos ajustes para se transformar em ficção. Escreveu: “Esqueciam-se de que ali havia tantas classes como moradores. O rico, o remediado, o pobre, o pedinte, o feitor do rico, o serviçal do remediado – uns e outros erguidos nas suas tamanquinhas”. E mais adiante, em tom de denúncia: “Um Portugal velho e rotineiro, de senhores e servos, estava ali vivo e presente. De mão vazia, ninguém pedisse justiça, conforto divino, instrução ou saúde. Parasitas do povo, o padre, o médico, o professor e o juiz, em nome de Deus, do saber, da lei ou de Esculápio, exigiam todas as formas de preitesia, a começar pela mais concreta: o óbolo dos frutos da terra”.
Adolfo Correia da Rocha formou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra, em 1933, e iniciou-se na profissão na sua mítica Algarez. Confessou que, como médico, presenciara tantas desgraças, e não pudera chorar. Registrou no seu Diário o dia em que se viu impossibilitado de curar uma criança: “Só podia pegar no bracito magro e morno, apertar a artéria inerte e ficar uns segundos a trincar os dentes, depois sair sem dizer nada”. E se perguntou: “Quem saberá por aí uma palavra para estes momentos? Uma palavra para um médico dizer a esta mãe, que entregou um filho vivo e recebeu da vida um filho morto”.
E enquanto Adolfo Correia da Rocha cuidava de doentes, o escritor Miguel Torga inspirava-se nos personagens da infância para povoar seus Contos da montanha. A decisão de se plantar na sua aldeia não foi tomada por acaso. Veio depois de uma tumultuada viagem à Espanha, França, Itália. Nesse périplo, Miguel Torga tornou-se uma espécie de olho de furacão. Diante dele viu desfilar a República Espanhola, em todo o seu martírio. E na Itália, infestada de cartazes fascistas com os dizeres Crédere, obbedire de Mussolini, entre as obras do imenso patrimônio artístico do país, o escritor se quedou deslumbrado diante da Basílica de S. Pedro. Foi quando ele, o descrente, escreveu:
Sob o teu manto de oiro, que arrefece,
É que eu me sinto irmão
Da toupeira sem olhos, que se aquece
Enterrada no chão!
Abro um parêntese. É difícil ler esses versos sem que nos venha à lembrança um outro poeta, São Francisco de Assis, que estivera em Roma num dia do ano de 1209, se enlambuzou com os porcos depois de lhe ter sido negada audiência com o papa Inocêncio III. Mas o papa logo o receberia, depois de um sonho, no qual vira surgir a seus pés uma palmeira cinzenta, como a lama dos porcos, que crescia de forma fabulosa. A pequena toupeira cega do Trás-os-Montes, que se enterra no chão, é uma grande metáfora. Como o animal de inverno de um outro poeta, o peruano José Watanabe, que no fim de sua hibernação toca o próprio corpo para constatar que sua carne não é a montanha.
Certamente é por conta desse sentimento tão terrestre que, finalmente, na França, na convivência com portugueses no exílio, com os quais comunga desesperança e saudade, Miguel Torga tomou a decisão definitiva de permanecer vivendo em Portugal. Vencera a tentação de combater na Espanha por uma causa perdida, sob a bandeira do 5º Regimento, comandado pelo legendário Enrique Lister. Desvencilhara-se da idéia de desesperar em Paris, num exílio sem fé. Sua consciência definira-se numa só frase: o local é o universal menos os muros.
E ele vai reencontrar seu país pobre e humilde, mas com uma natureza que era, para ele, um milagre de convívio humano, uma espécie de antídoto para aquele temperamento, misto de revolta, agudeza crítica, fome de humanidade. Fez um juramento, que é fundamento de toda sua obra: “Foi nessa pátria assim discretamente entendida como o chão sagrado de amor e de prova, que me dispus a continuar, com redobrada aplicação, o exercício de curar e o suplício de escrever…”. Iria trabalhar de dia a ver doentes, de noite subjugado pelos livros. “Em poucos meses estaria apto a usar honestamente o espéculo e o bisturi”.
Quanto à caneta, escreve, “se não vinha mais aparada da viagem, trazia pelo menos outra humildade”. E à caneta não deu tréguas. Da publicação de seu primeiro livro, Ansiedade, aos 21 anos, até o final de seu imenso Diário (iniciado em 1934 e terminado em 1993), foram 65 anos sem descanso. Se o livro A criação do mundo vai até o 6º dia, é porque um verdadeiro criador, segundo ele, mesmo sendo Deus, não descansa no 7º.
Essa consciência crítica necessitava de um nome, da mesma forma que Fernando Pessoa criara seus heterônimos. Nome capaz de pôr em evidência a dimensão de sua bio/grafia. “Bio” e “grafia”, com um travessão a cortar a palavra, para dar sentido ao conceito elaborado por Maingueneau: “A vida rumo à grafia ou a grafia rumo à vida”. Então, que o sobrenome fosse a urze, a torga Erica lusitanica, agarrada ao chão, a cumprir uma pedagogia assemelhada àquela educação pela pedra de João Cabral, tão seco quanto ele. Ou à de Graciliano Ramos, o mesmo gênero de linha reta, as mesmas feições daquela espécie de homem que não existe mais. E, antes da urze, do Torga, que nome se dar? A escolha já a fizera: Miguel de Unamuno e de Cervantes, duas figuras imortais da Espanha de sua admiração: bravura, inteligência, loucura visionária. A pátria do magnífico reitor da Universidade de Salamanca, Don Miguel de Unamuno, que ousara enfrentar, apenas com a arma de sua inteligência, o grito de “Viva la Muerte”, do general fascista Milan Astray, aquele que dizia ter vontade de sacar a pistola toda vez que ouvia a palavra cultura. Nomes de Espanha, por onde passara em plena Guerra Civil. Espanha “magra, ossuda, em pousio, onde a própria respiração se fazia a custo, e cada passo sabia a calvário repetido”. Sente-se na frase que a Espanha era, para ele, corpo dotado de humanidade, que conhecera o frêmito que antecede os grandes terremotos. Miguel Torga era da estirpe desses homens, desses miguéis de Espanha. Por isso, se queria ibérico acima de tudo. Por isso, a vida toda se conduziu como eles.
Conta o poeta e diplomata Alberto da Costa e Silva que o presidente Juscelino Kubitschek, quando ambos se encontravam em visita a Portugal, o encarregara de contatar o escritor Miguel Torga. Era intenção do presidente brasileiro condecorá-lo com uma de nossas comendas. Torga recebeu o enviado, mas recusou a homenagem. Alberto da Costa e Silva comentou que Miguel Torga provavelmente não aceitara o convite porque o governo do Brasil não condecoraria outros opositores do governo de Salazar, e Miguel Torga seria o único protegido pela distinção brasileira. Mas aquela recusa foi fruto de uma consciência maior, certamente ditada por aquele sentimento tão bem traduzido pelo escritor francês Pierre Jean Jouve, no seu prefácio ao livro La colombe, de Emmanuel: “O poeta representa, na catástrofe e contra ela, aquilo que é mais permanente e sagrado que toda ação política. Só o ultrapassa, em perfeição de gravidade, o homem que coloca sua vida na balança, e se bate”. Além disso, Miguel Torga não era apenas um nome. Era uma profissão de fé, uma determinação. A força da palavra mais viva do povo português.
Não há escritor sem suas circunstâncias. Além das montanhas de seu Reino Maravilhoso de Trás-os-Montes, há duas terras marcantes no dicionário de Miguel Torga: uma, física; outra, espiritual. O Brasil é o país de sua iniciação. Dezessete anos separam dois poemas com este mesmo título, Brasil. O primeiro, de 53, lírico, refere-se à pátria do menino e à infância perdida. O segundo, de 1970, é mais enfático ainda:
Brasil onde vivi, Brasil onde penei,
Brasil dos meus assombros de menino
Há quanto tempo já que te deixei,
Cais do lado de lá do meu destino.
Brasil, que visitou novamente, em 1954. Trinta anos de separação e o comentário de que desejaria ter se mantido sereno, mas que voltara a se emocionar diante da antiga escola e ainda sentia que o sapé das pastagens lhe picava os pés. E Miguel Torga escreveu esta passagem, que o aproxima de Gilberto Freyre, um dos escritores de sua admiração: “O mundo nunca será suficientemente grato ao Brasil por esta dignificação do negro, que é um triunfo no plano moral e no plano estético. Cor maravilhosa, o preto aveluda tudo, integra na sua pureza as manchas da desarmonia. Desenha-se. Um braço, um seio ou um rosto branco prolongam-se no ambiente, integram-se e diluem-se na luz. Mas que nitidez de contornos a duma presença onde a realidade e a sombra vivem fundidas!” Mas se o Brasil é quase só emoção e paisagem, a sua Espanha é só devoção, revelada nestes versos:
Não passarão!
Arde a serra, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!
Foi na Espanha que Miguel Torga testemunhou os escombros da guerra. Aquela mesma visão dos vencidos, que num outro século Francisco José de Goya y Lucientes soube tão bem retratar em Los desastres de la guerra e Los fusilamientos del tres de mayo. Aqueles escombros eram os “dejectos da ferocidade inútil, a esterilidade satânica do seu rastro”. Há um momento marcante na vida do escritor Miguel Torga. Foi na fronteira entre Espanha e Portugal, quando ele se viu no cruzamento de dois mundos. De um lado, amontoados em caminhões, prisioneiros, amarrados, aguardavam a ordem de fuzilamento. Era o final de uma das guerras mais fratricidas do século, que ele acabara de testemunhar, espécie de “avant-première” da II Grande Guerra. Sob os olhares temerosos de seus companheiros de viagem, Torga nega-se a responder à saudação dos vencedores partidários de Franco. Do outro lado, um Portugal soturno o esperava, um Portugal cujo regime se notabilizaria pela perseguição aos opositores, sistematicamente submetidos aos maus-tratos em prisões como as do Aljube, que ele não tardaria a conhecer. E seu delito maior foi o de ter publicado o 4º dia da criação do mundo, justamente a parte consagrada àquela viagem inesquecível.
Eu também atravessei aquela fronteira, quando Salazar e Franco ainda eram vivos. Causava calafrio passar por aquela aduana. Vi os tricórnios e as capas negras da Guardia Civil em Fuentes de Oñoro, a um passo de Vilar Formoso. Por isso, consigo imaginar Miguel Torga negando-se a responder à saudação daquela soldadesca descrita por Lorca, poeta de sua admiração, fuzilado em 36. O mesmo Lorca a quem Miguel Torga dirigiu estes versos, no seu Poemas ibéricos:
Venho, talefe branco da Nevada,
Filho novo de Espanha!
Venho, e não digas nada;
Deixa um pobre poeta da montanha
Trazer torgas à rosa de Granada!
Depois daquela travessia, outra vez em Portugal, o exílio dos exílios, entre uma Espanha humilhada e um mar onde os gemidos se perdiam. Miguel Torga vai se tornar o escritor da verdade, ponte entre tradição e modernidade. Mas, dialeticamente, também o da ruptura, que o impediu de tornar-se um intelectual tradicional, no sentido gramsciano do termo. Contra tudo e contra todos, Miguel Torga, sozinho no universo de sua consciência, vai incorporar às vozes do mundo vindouro aquelas que há muito haviam perdido a fala. Se sua escrita é toda denúncia, não o é por força de um desiderato ou por ditames de um invisível “intelectual orgânico”. É uma voz solitária e, ao mesmo tempo, múltipla. À margem de qualquer instituição e, por isso mesmo, uma das mais críticas de Portugal. Mas a que preço! Vigiado em permanência, os livros censurados, os interrogatórios da PIDE, a prisão do Aljube: todos os passos do calvário português.
Mas, em todos os momentos, o sentimento crítico e a atenção despertos para os mais simples acontecimentos, reveladores de grandes verdades. No percurso da prisão, pela janela do furgão que o conduzia, avistou o cavalo de pata erguida da estátua de D. José e ironizou: “Engraçados, os monumentos! Pretendiam inculcar a eternidade com ingredientes transitórios… Os ministros liam decretos de bronze, os poetas empunhavam liras de pedra, os reis pavoneavam a majestade nos pedestais…”. E seguiu-se a indagação: “Seria que o povo, que pagava as alegorias, lhes atribuía qualquer valor? Ou haveria em cada pátria dois mundos paralelos: o oficial e o outro? O passivo e o activo? O das comemorações e o das acções?”.
Preso, através das grades do Aljube, observava a vida transcorrendo lá fora: transeuntes sem qualquer consciência do que se passava lá dentro entre sombras e gemidos, mas que eram também aqueles “personagens que punham em movimento símbolos perenes de realidades quotidianas”. E, sobre a prisão, escreveu, implacável: “Enjaulado como uma fera, privado dos mais elementares meios de higiene, a ouvir e a cheirar os próprios rumores e odores, sem voz, sem direitos, sem acção, condenado a uma existência meramente vegetativa, funcional, de alambique, a comida a entrar e a sair, o sono e a vigília a alternar na repetição pendular do mesmo absurdo. Um suíno no chiqueiro tinha mais regalias do que ali um filho de Deus: o tratador que vinha a espreitá-lo, falava-lhe, ao menos”.
Por todas as suas qualidades de homem e de escritor, sinto aquele fascínio que revelei ao meu amigo José Rodrigues de Paiva, quando leio Miguel Torga. Tal como o do espectador do grande cinema neo-realista italiano, no qual a enunciação do real vem sempre acompanhada de uma absoluta perfeição de imagens. A obra de Torga tem o cunho daquela mesma beleza que penetra nossas entranhas e nos faz pensar na personagem de outro português, o escritor José Saramago. É a Blimunda, do Memorial do convento, que num dos diálogos do livro ouve alguém lhe dizer: “Ver como tu vês é a maior das tristezas, ou sentido que ainda não podemos suportar”. E Saramago também recupera, em epígrafe do mesmo livro, uma observação de Marguerite Yourcenar que cabe muito bem neste pequeno elogio a Miguel Torga: “Je sais que je tombe dans l’inexplicable, quand j’affirme que la réalité – cette notion si flottante –, la connaissance la plus exacte possible des êtres est notre point de contact, et notre voie d’accès aux choses qui dépassent la réalité” (“Sei que caio no inexplicável quando afirmo que a realidade – essa noção tão flutuante – , o conhecimento o mais exato possível dos seres, é nosso ponto de contato e nossa via de acesso às coisas que ultrapassam a realidade”).
Sempre a remar contra a corrente, todas as formas de opressão mereceram seu registro. A título de exemplo, foi absolutamente profética a anotação feita no seu Diário, do dia 14 de setembro de 1953. Naquele dia, de passagem pela cidade de Argel, um ano e dois meses antes de rebentar a sangrenta Guerra de Libertação da Argélia, ele escreveu: “As duas bofetadas que um polícia francês acaba de dar na minha frente a um nativo vagabundo hão-de custar caro à França. Até me pareceu ver o céu claro da Argélia abrir-se ligeiramente, e Maomé tomar nota do caso no seu canhenho de represálias”. E acrescentou: “Este cartesianismo europeu não se convence de que toda a forma de colonialismo é imoral, seja ela a mais progressiva materialmente e a mais codificada socialmente. De que à universal e tentacular presença civilizadora do cristianismo falta sempre um dos lados do diálogo: a opinião do indígena”.
Vivi em Argel entre 1970 e 1977. Sou testemunha de que naquele dia Miguel Torga teve uma antevisão daquela guerra que duraria 7 anos e iria custar mais de 1 milhão de mortos. Era 1998, em Évora. De tarde, numa livraria, Sônia, minha mulher, abre um livro de poemas e comenta que, em cada página do livro, há um nome de árvore, um registro de flor. Era a Antologia poética, de Miguel Torga, de quem até então eu conhecia apenas os contos. Pusemos dentro dele algumas folhas daquelas árvores desconhecidas do sol dos trópicos: folhas de choupo, carvalho, plátano… Hoje, as folhas estão secas. Os poemas, cada vez mais vivos. Foram feitos com os verbetes do dicionário da terra de um grande escritor e poeta que agora faz 100 anos. David Mourão Ferreira, o grande intelectual luso, o considerava “a reencarnação de um poeta mítico por excelência – daquele que vive na intimidade das forças elementares (a terra, o sol, o vento, a água) para celebrá-las com o seu canto – e alto exemplo de constante rebeldia, numa atmosfera que pretende asfixiá-lo”.
Estamos em 2007. Não há mais na pátria de Miguel Torga dois mundos paralelos, como aqueles que ele avistou através das grades da prisão. Há um mundo só, um vasto mundo, no qual nós, brasileiros, nos incluímos, a reconhecer que a voz de Miguel Torga – multiplicada nos livros e nos fados – não é apenas a voz de Portugal. É a voz de todos que o comemoram. A voz do homem que, segundo ele, é a consciência de seus passos.