5 poemas de András Petőcz
FELINA SOBRE O TERRAÇO
A felina e o poeta estão sentados sobre um terraço,
numa espécie de cidade, nas alturas de uma espécie de cidade.
A felina negra olha para diante. Ela não ronrona,
não se esfrega na perna do poeta, nos seus olhos
amarelos luz uma tristeza impassível.
Eles estão sentados numa cidade, nas alturas de uma cidade,
o poeta e a felina, benfeitora, a noite primaveril
espalha-se em torno deles e envolve-os pouco a pouco.
As luzes são tal como elas são em geral.
Em geral as luzes da noite são doces e tranquilizadoras.
Depois a felina estira-se, de repente, com voluptuosidade.
A felina negra volta ainda um pouco o seu olhar para o poeta,
Talvez se queixe do seu amigo de outrora ter envelhecido.
E ela embrenha-se na rua para o desconhecido. Ela deixa
o terraço, sai pela porta deixada aberta por omissão,
pela escadaria entre os transeuntes, correndo pelo passeio.
Aparentemente ela apressa-se para ir a qualquer lado, como se ela tivesse uma coisa
muito importante para fazer: nos seus olhos amarelos luz uma sede de aventura.
O poeta não chega, no que toca a si, senão a manter-se escondido na cidade.
Sobre as alturas da cidade, sobre um terraço que nunca tivesse existido.
Ele morre solitário, como convém a um poeta.
Por isso, ele não nota mesmo como esse momento é tranquilizador,
a cidade deixando-o com as suas luzes doces. Ele não nota
nem mesmo
como deixa lá tudo o que antes era importante.
A felina e o poeta estão sentados sobre um terraço,
numa espécie de cidade, nas alturas de uma espécie de cidade.
*
O POETA NAS ALTURAS
Das alturas o poeta tudo vigia
o que ele vigia é o mundo, primeiramente.
Nos braços do poeta está deitada
a felina negra, que não faz senão soprar
e ronronar, soprar e ronronar.
A felina negra não vigia o mundo.
Para ela o mundo resume-se ao que ela percebe
à sua volta: o apartamento do poeta, antes de mais.
Eles estão os dois imóveis. Como
se eles estivessem desde sempre nas alturas
como se eles estivessem agora para sempre.
O poeta olha para o mundo de maneira
Impassível, ele não faz senão perscrutar, sem parar.
Pela graça de deus, diz o poeta,
ainda e sempre sentado no seu sofá,
sem conversa, com a felina negra nos seus braços.
Pela graça de deus, sopra a felina,
e ela ronrona, e tudo continua a permanecer
imóvel, eles mesmos estão também imóveis.
Pela graça de deus, diz o mundo, e
ele não faz senão correr sem parar, apinhar-se, girar,
fazer isto ou aquilo, como aquele que tem coisas para fazer.
Das alturas infinitas o poeta perscruta
O mundo, como se ele se desfizesse em migalhas.
Em baixo, nas profundezas, todas as espécies de estranhas
figuras e formas, os seus irreconciliáveis
antagonismos, numa cavalgada densa.
Aqui e lá há fumo, sons de explosões,
como se qualquer coisa fervesse, ali, nas
profundezas infinitas, como se qualquer coisa se preparasse.
O poeta perscruta tudo isto só em silêncio.
a felina não o perscruta. Por vezes
ela agita-se um pouco, depois ela prossegue o seu sono.
O poeta está sentado nas alturas, do seu sofá
Ele observa a maneira como tudo se passa em torno dele.
*
A FELINA E O SEU PÊLO
O poeta sofre. Diz-se
que é o quinhão do poeta.
A causa do seu sofrimento é naturalmente a felina.
A felina negra é com efeito hostil contra o poeta.
Hostil e glacial.
A felina está estendida sobre um divã
pára, em frente ao poeta,
lambendo o seu pêlo com voluptuosidade.
O poeta sofre. Ele gostaria de tocar
o pêlo brilhante, doce e atraente da felina.
A lambidela do pêlo prossegue com indecência.
A felina mostra-se de maneira provocante, depois
salta subitamente sobre a coxa do poeta.
O poeta não sabe como prendê-la.
Ele não ousa tocar o pêlo provocante
da felina, tomado pelo medo de uma recusa.
O poeta não faz senão sofrer. Diz-se
que é o quinhão dos poetas.
A felina negra olha para o poeta com um ar malicioso, depois
ela salta da coxa do poeta, e corre
para longe: mesmo para o fim da sala.
Assim vivem eles, os nossos amigos, o poeta e a felina,
numa parte do mundo afastada, num planeta afastado,
num castigo eterno, na tristeza eterna.
Porque o poeta sofre. Diz-se
que é o quinhão dos poetas.
*
A FELINA E O POETA
A felina, quase impercetivelmente,
quase por lazer,
estica-se, estica-se, sem parar.
O poeta está agachado num sofá,
assim, ele perscruta a maneira como o tempo passa.
E, de vez em quando, ele perscruta também a felina.
Na realidade, certamente, ele não vê nada.
O poeta não pode notar a maneira
como o tempo rasteja do chão sobre o seu pé,
depois sobre a sua anca, sobre os seus rins.
Porque o poeta é – simplesmente – cego.
Ele não pode mesmo perceber como
o tempo vagueia no seu corpo, de tal modo que ele
amolece os seus músculos, as fibras dos seus músculos.
Ele não percebe porque no interior tudo é imóvel
no final, o tempo sobe sobre o seu rosto de poeta, cava
valas
sob os seus olhos, ele acrescenta rugas à sua fronte,
depois embranquece por magia a sua barba negra.
A felina não faz, quanto a ela, senão esticar-se, sem parar,
quase por lazer, sem nunca se apressar,
abandonando para sempre o seu velho amigo, o poeta.
*
A PARTIDA DA FELINA
A felina já não está presente no apartamento do poeta,
quando muito a sua sombra desenha-se, por vezes
na parede, no chão ou ainda no ar.
O poeta executa quotidianamente as tarefas necessárias.
A manutenção da caixa de areia, assim como colocar para a felina
uma alimentação de qualidade, não é uma tarefa fácil.
A silhueta da felina está no apartamento, por todo o lado.
Assim o poeta discute à noite com o ar, ou
com o solo, a parede, interpelando de vez em quando a sua felina,
e ele ouve regularmente o ronronar agradável da felina.
A sombra da felina não deixa senão raramente aparecer as suas
garras afiadas.
A mão do poeta está assim cheia de feridas, mas frequentemente, sim
também o seu pescoço, a sua cara, em função da violência
com a qual a silhueta da felina sobe sobre o poeta.
Tudo poderia permanecer assim, talvez até à realidade eterna.
Só o odor da felina, o perfume da felina falta
muito,
o contacto dos pêlos doces da felina, e este calor, a
maneira como
a felina – todas as noites – mantinha o corpo do poeta em vida.
O poeta tem frio. Ele treme de falta pelo calor da
felina.
E, enquanto isso, ele pensa invariavelmente que a felina está
com ele, não está senão nele, ele observa-se sem compreender
como ele perece, não compreendendo os tremores do seu
corpo.
A felina negra partiu como se nunca tivesse estado lá, nunca.
Ela deambula longe, no meio de paisagens estrangeiras, sem talvez mesmo
saber que
o poeta enche uma gamela de comida para felinos.
Tradução para português por Maria João Cantinho.
♦
András Petőcz, nascido em Budapeste, em 1959, é um poeta e escritor húngaro. Galardoado por numerosos prémios nacionais e internacionais, entre os quais a Cruz de Prata de Mérito, a Cruz de Cavaleiro da Ordem do Mérito, o Prémio Sándor Márai e o Prémio Attila József, publicou dezenas de romances, recolhas de poemas e novellas que foram traduzidos em inglês, francês, alemão, georgiano, polaco e búlgaro. Em meados dos anos da década de 1980, ligou-se ao círculo parisiense Magyar Műhely (Atelier húngaro). Após os estudos em literatura e história na Universidade Loránd Eötvös de Budapeste, defendeu a tese de doutoramento sobre a literatura húngara do século XX. Em 2013, foi convidado para a Biennalle internacionale des poètes em Val-de-Marne. Nesse mesmo ano, foi escritor na residência da Villa Marguerite Yourcenar e em 2015, em Passa Porta, na maison internationale des littératures à Bruxelles, onde trabalhou sobre o seu novo romance. Publicou muitos livros de poesia em francês e o título do último é «Féline» (2021) e com ele participou no Marché de la poésie em Paris, em 2022.
Maria João Cantinho nasceu em Lisboa em 1963. Professora, ensaísta e poeta, tem várias obras publicadas, no âmbito da ficção, da poesia e do ensaio. Foi finalista em 2006 no Prémio Telecom, em 2016 foi galardoada com o Prémio Glória de Sant’Anna pelo livro «Do Ínfimo» e em 2020 foi premiada com o Prémio PEN Clube Português na modalidade de ensaio. É membro do Pen Clube Português, da APE e da APCL. Publica regularmente em revistas académicas e literárias. É editora da Revista Caliban.
Fotografia do autor por András Petőcz.