O Verso da Palavra I Maurício Vieira
Somos uma espécie que utiliza sons de forma única, como se brincássemos com eles. Desta manipulação de sons surge a palavra. Entretanto, a primazia da linguagem tem um preço. Reduz outras formas de comunicação, mais próximas das utilizadas por outros seres. É muito recente o estudo da comunicação animal, e esbarramos na dificuldade em imaginarmos e nos projetarmos na perspectiva e na subjetividade de seres que apreendem o mundo com aparatos sensoriais tão distintos dos nossos. Sabemos que se comunicam, mas não sabemos muitas vezes o que dizem e como, em linguagem ainda pouco compreendida em suas regras e elementos mais básicos.
Enquanto a ciência tenta decifrar estes elementos, povos que vivem próximos dos animais dominam este conhecimento de forma prática. Sendo caçadores empáticos, esforçam-se em ouvir, compreender e imitar estes seres. Sons da comunicação animal estão presentes nos versos mantidos por curandeiros que preservam a cosmogonia destes povos. Longuíssimos, muitos de estrutura regular como artefacto mnemônico, estes versos aludem a tempos em que animais e humanos viviam sem distinção e falavam a mesma língua. Estes sons integram também rituais que almejam a comunicação com um espírito animal. Roga-se ao espírito para que libere sua força, para se ter sucesso na caça ou na cura. Para que esta comunicação ocorra, cada sociedade emprega técnicas distintas, como a repetição de sons, ritmos e o uso de substâncias. O que chamamos hoje poesia durante muito tempo foi técnica de ritual de comunicação com espíritos de animais. A poesia era palavra de encantamento, conjuro, chamamento, feitiço e prece; palavra cantada que levava à dança, e mesmo ao transe, a transporte de um plano a outro. Há povos que não por acaso chamam poesia uma linguagem de pássaros.
Naturalmente toda sociedade agrária e urbana distancia-se da vida em comum e do diálogo constante com outros seres vivos. Cada sociedade adapta a poesia às suas necessidades, os épicos louvando os grandes feitos, as elegias lamentando as perdas, as baladas e líricas elevando o amor. Nunca se deixou de produzir poesia. Entretanto, as obras mais marcantes de cada época são aquelas cujos autores estavam conscientes do poder sonoro das palavras. Dante, Petrarca, Shakespeare, Camões, Milton, Goethe, Keats, Leopardi, compunham versos com enorme atenção a ritmos e sons. Para além da grande força daquilo que diziam, sabiam como expô-lo de forma memorável. Produziam versos que ecoavam na mente de quem os ouvia e lia.
A partir do final do século XIX, a poesia desmembrou-se em muitas vertentes, cada uma reivindicando sua primazia, e nesta fragmentação o emprego do som foi preterido pela linguagem escrita. E no entanto, em meio a tantas fórmulas, programas e teorias, alguns poetas intuíram que o som em um verso, mesmo o mais sutil ou arbitrário, podia comunicar para além do que a metáfora, a sintaxe e outros recursos transmitem ao leitor ou ouvinte. Poetas tão antagônicos quanto Robert Frost e T.S. Eliot abordaram o elo entre o som e o sentido.
Eliot queria pela poesia ir além da poesia, pelo som captar algo mais profundo, inconsciente. “A ‘imaginação auditiva [é] sensibilidade por sílaba e ritmo, penetrando bem abaixo dos níveis conscientes de pensamento e sentimento, envigorando cada palavra; submergindo ao mais primitivo e esquecido, voltando à origem e trazendo algo de volta”. Evoco os ritmos encantatórios do poema Love Song of J. Alfred Prufrock.
Robert Frost afirmava que há sentido no som. Afinal este já existia antes das palavras, e já tinha sentido sem letras ou desenhos. “Se retrocedermos o bastante, descobriremos que o som do sentido existia antes das palavras, que algo na voz ou no gesto vocal fazia o homem primitivo transmitir um sentido a seu semelhante antes da espécie desenvolver um mais elaborado e concreto símbolo de comunicação na linguagem. Li inclusive que nossos Ameríndios possuíam, para além de uma linguagem figurativa, um meio de comunicação (embora sem definição de quão desenvolvido) pelo som do sentido. E o que é isto senão ativar com a imaginação e reconhecer as imagens do som?” Quem não se encanta com a misteriosa cadência e a aparente simplicidade de Stopping by woods on a snowy evening?
Ambos Eliot e Frost reconhecem a força desta comunicação praticada por nossos ancestrais, mais próximos do animal e de mensagens pré-simbólicas. Paul Zumthor em seus estudos sobre poesia oral aludiu à preservação desta arte em sociedades na África e nas Américas e seu declínio no Ocidente em prol da primazia do texto. Felizmente, o sound of sense de Robert Frost, o movement of thought de Edward Thomas, a auditory imagination de T.S. Eliot, foram posteriormente explorados pelo poeta francês Yves Bonnefoy. Na contramão da vaga estruturalista, o poeta francês deu seguimento a estas ideias em seus ensaios “L’Acte et le Lieu de la Poésie,” “La Parole Poétique,” e “Le Lieu d’herbes”. O verso estimula a interação entre o som e o sentido. Matéria e significado reverberam em uníssono. Se a linguagem comum estrutura e objetifica nossa percepção do mundo, a poesia e suas texturas sonoras permitem um resgate do elo emocional com o que nos rodeia.
O que estes poetas e estudiosos praticaram em seus versos e expuseram em seus ensaios é que se a palavra é coisa nossa, humana, artefacto, ferramenta, ela é composta de som, material que precede nossa diferença com outros seres. Se a linguagem fixa e traz certezas, o som é volátil, acede a outras partes do cérebro não ativadas pela linguagem. O som fomenta formas de comunicação anteriores a esta.
Estes poetas intuíram que para passar a mensagem, comunicar, que é o intuito do poeta, o som é essencial. Não controlamos exatamente como vai ser feita a travessia, pois o som corre por um fluido como um barco na água, mas sem ele o transporte é mais precário. Se para a comunicação com os espíritos, os curandeiros proferem palavras especiais de forma incomum, se para chegar ao transe o ritual precisa de estímulo, um tambor, uma cadência ou uma substância, no caso do poema, fragmento deste ritual, a entonação, a expressão, o timbre, a assonância, a cadência, o ritmo, funcionam como elementos cruciais de transporte. É preciso cantar poesia como quem toca tambor.
Pois poesia é transporte. É o que nos leva ao verso da palavra. Age sobre a imaginação através da metáfora, que transporta a palavra para outro plano de compreensão. Assim como o transe é transporte para um outro plano de proximidade com outros seres, a metáfora é o transe da palavra. Entretanto, para que este transe seja completo, para favorecer o transporte a um outro estado sensorial de transmissão da mensagem, a poesia precisa de todos seus recursos, semânticos, sintáticos, sonoros e percussivos.
Lembramos de tantas canções, mas quase nunca de um poema, mesmo o mais sublime. Por que será que nossas mentes não estão cheias de poemas, e que as pessoas dizem que não gostam de poesia? Algum poema já nos fez dançar? Com o crescente interesse por povos que não fazem distinção entre o humano e outros seres vivos, é um bom momento para a poesia recordar-se de suas origens nestas sociedades. Pois se hoje a poesia está no papel, fragmentada, silente, amarrada a correntes culturais e filosóficas, subjugada pelo ritmo frenético das imagens digitais que dominam a cultura, hoje reunimos as condições para trazer de volta uma linguagem de pássaros.
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Mauricio Vieira, jardineiro de palavras, é autor dos livros de poesia Manual Onírico de Jardinagem, As Mão Vazias, do romance A Árvore Oca e do infantil ilustrado Floresta. Edita a revista Arvoressências: www.arvoressencias.com
Mais informações: https://linktr.ee/Jardineiro_de_Palavras
Créditos da foto por Ozias Filho.