No Jardim das Amoreiras, em Lisboa, há um lugar especial onde nossos pés pedem âncora. Uma casa reformada, moderna, mas com telhado de tesouras aparentes e escoras de madeira como nas casas sertanejas do Brasil.
Uma aura qualquer se desprende dos quadros presos às suas paredes brancas como a cal, fazendo pulsar nosso afeto. E, para completar o cenário, do lado de fora, no jardim, lemos as duas estrofes de um soneto de Antero de Quental gravadas num banco de pedra, a dizerem o quanto a poesia das coisas se insinua dentro da gente.
No dizer de um amigo, há ali algo de um mosteiro Zen. Mas a casa nem é templo, nem santuário. É sede da fundação que abriga obra e memória de dois artistas singulares: a portuguesa Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) e seu marido, o húngaro Arpad Szenes (1897-1985).
De 1940 a 1947, eles moraram no Brasil, onde viveram exilados em tempo de um Portugal nublado demais, auge da ditadura salazarista. Logo fizeram amigos entre escritores e artistas. Lista longa: Lúcio Cardoso, Murilo Mendes, Carlos Scliar, Manuel Bandeira, entre outros. Dessa época, a tela de Vieira da Silva História trágico marítima, uma das mais conhecidas. Inspirada no livro do século XVII, de título homônimo, descreve os tantos naufrágios de navios portugueses. Mostra de cumplicidade entre Vieira da Silva e Cecília Meireles, por exemplo, é a publicação em tiragem limitada de Flores e canções, da Confraria dos Amigos do Livro. Curiosamente, ela não se encontra no mostruário da Fundação onde estão expostos os trabalhos que ganharam colaboração da artista. Entre os poemas de Cecília Meireles, ilustrados por Vieira da Silva, é tocante o A morte da formiga, o bichinho menor que qualquer letra: / mais fina que qualquer fio. É quando a poetisa se pergunta como seria o sofrimento naquele corpo mínimo, já que o sofrer sempre existe. E, junto ao poema, os desenhos abstratos da artista levando-nos a meditar sobre o contorcer-se da formiguinha, de repente ligada pela arte à nossa condição humana.
O Brasil foi importante para motivar Vieira da Silva a se voltar para um tema que seria um de seus favoritos, a construção das grandes cidades. Linhas entrecruzadas e diferentes coloridos de alguns de seus quadros traduzem os enredos arquitetônicos que aprisionam nosso cotidiano e desembocam na violência de nossas metrópoles tentaculares. Sete décadas após a passagem da artista pelo Rio e por São Paulo, a antevisão contida nas telas da artista portuguesa é provada profecia.
Contudo, suas premonições não se limitaram apenas à paisagem brasileira. Em A biblioteca em fogo, uma de suas pinturas mais conhecidas, há até quem a julgue alusão ao incêndio da Biblioteca de Alexandria. Imagino que ela também configura o próprio destino do livro consumindo-se no fogo do capital. Queima de um saber arrumado durante séculos nas prateleiras de uma livraria mítica que, de repente, arde em chamas. A exemplo das que hoje vão fechando suas portas, numa espécie de auto de fé metafórico.
Como na arte tudo é e não é coincidência, descubro na casa de um artista plástico, nosso conhecido, livros sobre outro pintor contemporâneo tomado pela mesma inquietação que suscitou os quadros de Vieira da Silva. Ele se chama Anselm Kiefer e nasceu em 1945, quando seu país, a Alemanha, acabava de ser devastado pela guerra. Nos seus anos de formação, foi induzido, como boa parte de seus compatriotas, a “esquecer” o que havia ocorrido durante o regime nazista. Para se livrar de um trauma é sempre mais confortável fazer tabula rasa do passado. Fingir que a História voltou à “hora zero”, como se ela pudesse ter pedaços amputados ou momentos vazios, intervalos de uma peça de teatro. Kiefer, recusando-se a pensar assim, foi dos poucos artistas que rompeu com as formas então vigentes nas artes plásticas de seu país. Na sua visão dialética, se nada mais poderia ser como antes, esse antes em vez de esquecido, deveria ser absorvido durante o processo de criação. E incorporar como sua matéria-prima não apenas a tradição que culminou na grandeza do romantismo alemão, mas também as ruínas e desgraças legadas pelas catástrofes. Ou seja, furar o orifício e atravessá-lo, camada por camada.
Anselm Kiefer passou, então, a agregar às grandes superfícies de suas telas matérias como chumbo, pregos, palha, fibras, cinzas, arames, cabelos. O cabelo de ouro de Margarete e o cabelo de cinzas de Sulamita, como no poema Fuga da morte, de Paul Celan, o poeta judeu que escrevia em alemão. Marcado pela tragédia de seu povo, Celan terminaria por se jogar no Rio Sena, em Paris. Mas sua poesia marcou com sinete de fogo a pintura de Kiefer, a tal ponto, que alguns pedaços de seus versos foram transpostos para as telas do artista. Kiefer rompeu com os cânones da época, nadando contra a maré da arte importada, sobretudo a dos Estados Unidos, assumida como paradigma por boa parte dos artistas da Alemanha do pós-guerra. As janelas que abriu à sua pintura permitiu-lhe revisar temas, formatos, materiais. E dela brotou uma arte, embora formalmente diferente, próxima enquanto destino das obras de Vieira da Silva. Não por acaso, os dois foram dos raros artistas a observar de forma inusitada a paisagem urbana brasileira.
Em 1990, Anselm Kiefer vislumbrou do alto do Edifício Copan a floresta de edifícios da cidade de São Paulo. Fotografou, analisou, meditou. E fixou numa estranha tela, intitulada Lilith, um panorama urbano devastado, coberto por uma chuva de partículas cinza, chumbo, cobre. No meio, na parte de cima do quadro, caligrafou o nome “Lilith”. E ,abaixo, pintou uma figura indefinida, formada por uma espécie de fumaça negra, esvoaçante. Algo com a imagem do gênio ao sair da garrafa, nas histórias para crianças das Mil e uma noites.
Lilith, primeira mulher de Adão ou deusa das tempestades e da morte.
Ou uma diaba avistada com 30 anos de antecedência pelo pintor alemão Anselm Kiefer, pairando sobre São Paulo, sobre o Brasil.
Cavando nosso túmulo nas nuvens.
Como no poema de Paul Celan.