Quatro poemas do livro ‘PEIXE VOADOR’ de Rita Pitschieller Pupo
Perguntas enquanto brincas com os meus dedos
se continuo a acreditar no amor
respondo que sim, mas não todos os dias
depende do que sinto, do que quero e do que sonho
depende da posição em que acordei
do que comi e das horas de jejum entre refeições
das condições meteorológicas
da previsão de catástrofes e da aproximação da terra à lua
o magnetismo é importante, no amor.
depende da leitura dos mapas astrais em que não acredito
mas que me divertem nas probabilidades de me imaginar tua
depende do número e grau de ferocidade dos animais
que se atravessam no caminho entre casas, trabalhos e casas
porque na cidade as garras são maiores do que na selva.
depende de ti e do tom em que me fazes essa pergunta
depende se chegaste mesmo a fazer a pergunta
ou se imaginei que a fazias por nem sempre saber a resposta
depende também do que queres fazer a seguir
se queres fazer alguma coisa a seguir
ou se vais continuar a ser uma intermitência explosiva.
depende da quantidade de dilemas diários
os teus, os meus, os do mundo
depende do grau de insensibilidade e de saudade
que tirámos do armário hoje de manhã quando nos vestimos
depende até das horas a que a maré subiu e do número de ovos
que as tartarugas deixaram na areia lá para o atlântico sul
preocupa-me se a espécie está mais perto de se salvar ou de se extinguir,
não falo só das tartarugas.
sim, no essencial continuo a acreditar no amor
sobretudo porque continuo a encontrá-lo no dicionário
e eu acredito no dicionário
nos desacordos ortográficos também
acho que o amor depende ainda muito da forma como o enrolamos
gramaticalmente na língua e da ressonância na cavidade bucal
o que se passa é que pelo caminho tenho vindo a ganhar flexibilidade
e ser contorcionista tornou-se uma opção.
*
Imunizámo-nos sob a transformação das casas
corpos de linguagem infinita altamente transmissível
foi sem pudor que habitámos a distância e fizémos elégia
do nosso sentido catapultado para dentro
agora resistimos à fissura que devolve a circulação ao mundo
e reivindicamos a poética dos nossos lugares antologia
onde fundámos a forma elástica de nos ser
o modo silêncio ebulição
estímulo procriação
um dueto de sopro e cordas que semeámos
para ser o vento. a tempestade.
*
In memoriam:
saber sem prece cair a pique
dando peito e costas ao poema que é
souvent, um poço áspero com fundo
a ferida engomada e defumada em metáfora
porque isto de ser chaga à luz do dia
sem veludo a amansar a retina
é uma ilegibilidade de mármore a
irradiar entre fissuras
acordar um dia com o frasco de diluente
vazio nas mãos, aceitando a besta
o veneno, o fogo posto, a eternidade
de que há raízes antigas prontas para romper
a terra abrindo espaço ao sulco mínimo onde poisar
ao de leve, a cabeça.
*
Construir uma casa que nos faça de poema
emoldurado em painéis solares
assim será sempre renovável
o amor.
**
Rita Pitschieller Pupo, nasceu em Lisboa, em 1981. Gosta de viver perto do mar. Licenciada em Ciências da Comunicação na FCSH, estudou formação de actores na ESTC, literatura e escrita criativa em diversos fóruns. Passou pelo jornalismo. A par do trabalho em comunicação e projectos culturais, lecciona o Seminário ‘Estados criativos e expressão poética no processo psicoterapêutico’ na APPSI – Associação Portuguesa de Psicoterapia Psicanalítica, onde é curadora do Centro de Criação Psicanalítica. Tem poemas publicados em revistas literárias, entre as quais Flanzine, Eufème, Nervo e A Morte do Artista. Tem também contribuido para publicações online em Portugal e no Brasil. Em Maio de 2022 publicou o livro de poemas ’Peixe Voador’, pela Editora Labirinto.