O Universo Poético de Joaquim Cardozo: Linguagem e Modernidade I Everardo Norões
Para penetrar na obra de Joaquim Cardozo é preciso impregnar-se de seu pensamento, como se detrás de nós, a cada página, ele apresentasse o texto como um corpo vivo, uma estrela de sua constelação.
Sem estar presente na sua presença.
1.
E a presença é um dos elementos fundamentais da poética do autor de Signo estrelado. Um escritor e ensaísta francês, Jean-Michel Maulpoix, escrevendo a propósito de Yves Bonnefoy, poeta filósofo da mesma estirpe de Joaquim Cardozo, deu uma definição interessante sobre a presença, que “não é outra coisa senão a imortalidade sentida no próprio coração da finitude”.
Assim sentimos ao lermos Joaquim Cardozo. Mesmo quando ele trata das coisas simples (flamboyants, a chuva dos cajus ou um buraco de traça nas páginas de um livro) tudo se transmuda de forma extraordinária, como se ele dispusesse da possibilidade alquímica de tecer uma aura em torno de tudo, um grão de eterno a fecundar o efêmero. Mesmo sob as decrépitas calçadas do Recife morto ‘falam baixo as vozes da alma antiga’. E nos trechos de sua lírica, a exemplo do poema Análise dos timbres do ruído, a simples mudança da concordância verbal, sublinhada em itálico pelo autor, transforma completamente o sentido e marca sua ideia de presença:
Quando está próxima não te vejo.
Dos teus passos o ruído é os teus sapatos
O toque de tuas mãos nos copos e nos pratos
É as tuas luvas.
O roçar da toalha na tua nudez
É o ar que te envolve – respirado ar –
Pois no ambiente disperso, pairante,
Imagino os teus gestos distantes
E na extremidade desses gestos o timbre
De tua voz.
Uma segunda característica da poesia de Joaquim Cardozo é a constante pesquisa de linguagens (aqui o plural é deliberado). O exemplo dessa busca constante é expresso num de seus poemas mais conhecidos, A nuvem Carolina. Certo dia ele sente-se como que visitado por uma nuvem, a que chama de Carolina, e com ela mantém uma longa conversa. O ambiente é bucólico: um sítio, cajazeiras, dois morros coroados de mata virgem. Trata-se de uma nuvem ‘viúva’, com nome de mulher, a desejar uma asa. E o poeta dialoga com ela, interpretando seus gestos de nuvem, porque, segundo ele, ‘da formalização dos gestos da Natureza pode nascer sempre uma linguagem’. E define aqueles gestos formando um dizer:
– Gestos de fuga, de fraga, de fronde e curso d’água –
Símbolos de uma linguagem nova quase toda indecidível;
Não compreendi, a princípio, aquilo, o que nela significava,
Mas senti que eram gestos, e gestos são palavras.
Ao lado, ao alto, entre morros, tudo era vazio:
A nuvem cinza e ouro àquele dia
Não aparecera entre os capões do mato: não. não. não. . . não. . .
Em todas as manhãs seguintes. . . sucessivas. . .
– Nunca/não surgiu, surgiu nunca/jamais
Com gestos de fuga e longo vôo.
– Gestos de fraga, de fronde e curso d’água.
A preocupação com a linguagem não se encontra apenas em muitos de seus poemas. Também ocorre no seu teatro ou ensaios. Um texto de 1957, O poema visual ou de livre leitura, traduz a síntese de suas reflexões teóricas sobre a linguagem da poesia e a da pintura. Nele, compara os valores fonéticos graduados pela quantidade de ‘moras’ às gamas coloridas aplicadas na arte pictórica. Sua atração pelo tema da linguagem era tão importante e recorrente que chegou a sugerir a criação de um Instituto de Altos Estudos Poéticos, onde se poderia estudar questões como a do poema visual ou aquelas relacionadas ao intuitivismo poético e à metapoesia. Esta última – segundo ele – “tão bem insinuada no poema de João Cabral de Melo Neto, Uma faca só lâmina”.
A terceira característica da poesia de Joaquim Cardozo é a de não ter sido seduzida pelo modernismo da Semana de 22. Marcada no início por obras como a de Emile Verhaeren, ela tem um desapego a movimentos e filiações. Isso o levou, tanto a lançar o olhar para os espaços que revelam o movimento da vida em construção, como para o que se constrói de dentro, o não visível.
Um texto do crítico César Leal, publicado pela primeira vez na obra Prosa e poesia completa de Joaquim Cardozo, intitulado Joaquim Cardozo e o Modernismo, escreve que entre os poetas brasileiros do século XX, Joaquim Cardozo é o que realizou a maior concentração de valores poéticos do modernismo planetário (…), por ter compreendido o espírito de nossa época e o núcleo essencial da modernidade, sem cujo entendimento não seria possível antecipar tantas questões relativas ao status da poesia brasileira, a partir da década de 20.” E chama a atenção para o fato de mesmo os poemas de Joaquim Cardozo que se inscrevem numa temática regionalista, “nunca terem sido ultrapassados pelos seus contemporâneos em qualidade, concentração e universalidade das imagens”.
Decorrente disso, encontra-se uma quarta característica da poesia do autor de Signo estrelado: a clara distância entre ela e a de seus contemporâneos, aqueles de sua geração que não conseguiram ultrapassar o território da tradição e não perceberam que detrás de nossas manifestações culturais poderia caber todo um leque de possibilidades criativas modernas, contemporâneas. Isso talvez explique o porquê de um intelectual como Benedito Monteiro, o grande amigo de Cardozo, ter permanecido no limbo de nossa literatura, quase como se nunca tivesse existido.
Num ensaio de Italo Calvino sobre o poeta Cesare Pavese, ele trata um pouco sobre essa distância. A distinção entre dois estilos (estilo não no sentido clássico de nosso entendimento, mas enquanto “sistema de coordenadas essenciais para expressar nossa relação com o mundo”).
O primeiro estilo é o do “viver voluptuoso”, o que é submetido aos ânimos, aos impulsos, sem desenvolvimento e sem princípios. O segundo, o viver ou ser tragicamente, o que significa conduzir o drama individual como uma força concentrada que deixa sua marca em cada tipo de ação, de criação. A poesia de Joaquim Cardozo tem a marca desse estilo do viver tragicamente, que consiste, cito Calvino, em “transformar o fogo de uma tensão existencial em atuação histórica, fazer do sofrimento ou da felicidade privada, essas imagens de nossa morte”.
Joaquim Cardozo era, nesse sentido, um homem de seu tempo. Rejeitou o “viver voluptuoso” numa época em que os dramas pessoais se misturavam às tragédias coletivas. E declarou-se um “homem marcado em país ocupado pelo estrangeiro”. Sob essa marca, nessa condição de intelectual situado no universo, carregando sempre as circunstâncias de seu tempo, escreveu um poema instigante, relativamente pouco conhecido. Trata-se de Poesia em homenagem a Isidore Ducasse. Isidore Ducasse, ou Conde de Lautreamont, autor de os Cantos de Maldoror. No meio de tantos outros não datados, o poema tem data precisa e nome do lugar onde foi escrito: Paris, 1938. A data encontra-se implícita no texto: É o dia da Assunção de Nossa Senhora, anunciado pelos sinos da igreja de Saint-Germain: dia 15 de agosto, uma segunda-feira. Nesse dia Joaquim Cardozo encontrava-se em Paris, fugido após duas detenções no Recife. Viagem na qual passou por Portugal, Espanha e França. Nesse mesmo dia, o jornal parisiense Le Figaro, que ele certamente leu, anunciava que a Alemanha havia convocado 750.000 reservistas para as manobras de outono. Na Espanha, as batalhas do Ebro e da Estremadura configuravam o fim da guerra e o avanço dos fascistas espanhóis. Em Portugal, a ditadura de Salazar torturava e matava seus opositores.
Ao evocar Isidore Ducasse, no mês de verão no qual os habitantes desertam a capital francesa, o poema é revelador de como a inteligência dialética de Joaquim Cardozo era capaz de associar elementos de todas as instâncias do pensamento. Suas leituras (leitura no sentido mais amplo) estavam, de fato, antenadas com o que acontecia no mundo. Sua literatura havia saído das várzeas e mangues e cajueiros para atingir horizontes cuja vastidão poucos de nossos poetas conseguiram alcançar.
Nesse aspecto, ele é um dos poucos que produziram entre nós, na sua época, uma poesia de teor filosófico. E é o próprio Joaquim Cardozo que a define assim, ao responder a um questionário do poeta José Mário Rodrigues: “A poesia deve ser de palavras e de ideias, pois as ideias se exprimem por palavras e estas possuem quatro significantes, entre os quis o halo: Daí se conclui que as palavras usadas na poesia não pertencem, em geral, a uma linguagem e, sim, a uma metalinguagem.”Uma poesia que pode ser comparada a um salto tripartito, ou a um voo. Como o salto de Ademar Ferreira da Silva, que o poeta descreve como “um voo abandonado no chão à espera de um pássaro”. O estranhamento de seus textos, às vezes aparentemente simples, carrega sempre uma indagação sutil, uma meditação sobre o estar no mundo, a busca de um sentido sem o receio do interrogar-se e do ir além das fronteiras mais óbvias da literatura.
O poeta Félix de Athayde, numa matéria publicada no Jornal do Brasil, em 1981, intitulada Um alto voo de despedida, escreve que, para Joaquim Cardozo a língua, a poesia, eram suas formas fantásticas de conhecimento, como o foram para Vico,
que havia reconhecido num fantástico e não matemático, “uma forma de pensar o mundo”.
Joaquim Cardozo no futuramente de seu tempo.
Dialeticamente, tão complexo. Ao mesmo tempo, tão simples. Susceptível de ser entendido por fãs de minisséries da Globo. A exemplo lido num blog. Uma jovem do que após assistir à minissérie Amores Roubados, confessa ter se apaixonado pelos poemas de Joaquim Cardozo, poeta que não conhecia. E, logo havia buscado na Internet referências, biografia, tudo ou qualquer coisa que dissesse respeito a ele, Joaquim Cardozo, o autor daquele verso que lhe havia tocado:
Eu não quero o teu corpo
Eu não quero a tua alma,
Eu deixarei intato o teu ser a tua pessoa inviolável,
Eu quero apenas uma parte neste prazer,
A parte que não te pertence.