A Mulher da Foto I Crónica de Everardo Norões

Na Internet, fotos de uma senhora elegante, traços eurasianos, de origem belgo chinesa. Transporto-me a um acontecimento do início dos anos 70. O dia em que fomos convidados para um encontro na casa de Miguel Arraes, em Argel. Na casa da avenida Franklin Roosevelt aguardávamos uma senhora simpática, vinda da China. De passagem oficial pela Argélia, ela havia feito um pedido: encontrar exilados brasileiros. Era a mulher da foto. Médica, escritora, um de seus livros havia sido levado ao cinema e premiado no final dos anos 50: Suplicio de uma saudade. (Em Portugal, A Colina da Saudade). De cunho autobiográfico, o romance narra o caso amoroso entre ela e um correspondente de guerra do The Times, Ernest McLeavy Morrison, australiano, o primeiro jornalista a ser morto na Guerra da Coreia.
O filme, tendo como diretor King Vidor (famoso cineasta, que dirigiu durante uma longa vida profissional 52 filmes e séries) contou com atores famosos na época, como William Holden e Jennifer Jones. Suplício de uma saudade é uma trama dramática ao gosto do público, contendo uma espécie de sátira à complexa sociedade da Hong Kong de então. Lugar onde vicejava um pequeno mundo cercado de privilégios e excessos no coração de uma China ainda marcada por extrema miséria. A trilha do filme marcou época e teve músicas como A many-splendoured thing, que foi interpretada por nomes famosos como Frank Sinatra e Nat King Cole.
Na época da visita, a Argélia acabava de sair de uma guerra de libertação sangrenta contra a França (estima-se em 140.000 a 152.000 combatentes mortos, além de cerca de 30.000 militares franceses). O país havia se tornado, após a independência, uma espécie de centro do então chamado Terceiro Mundo. Representações de movimentos de libertação de vários países, militantes de partidos diversos, exilados e combatentes ali encontraram abrigo. O mundo vivia em ebulição. E a China de Mao-Tsé Tung em plena Revolução Cultural. A Guerra do Vietnã abalando as estruturas do Império Americano e a América Latina sob ferro e fogo de ditaduras militares tuteladas pelos Estados Unidos. Enquanto isso, a Europa começava a dar adeus a suas antigas colônias de África e a perder aquele frenesi cultural que havia embalado intelectuais de boa parte do Ocidente.
A visitante, filha de mãe belga e de um general chinês, falava um francês perfeito. Na ocasião, era uma espécie de embaixadora itinerante de seu país. Uma China então olhada de viés por boa parte do Mundo e ainda longe de ser a potência de hoje. O nome da visitante: Han Suyin. A conversa naquela tarde nada tinha a ver com filmes ou livros. Mesmo se as obras de sua autoria já estivessem espalhadas por livrarias mundo afora. Seu interesse era outro. Conhecer os poucos brasileiros que viviam naquele país árabe para conversar sobre o futuro de dois gigantes. Num futuro próximo, segundo ela, China e Brasil seriam duas nações com interesses complementares. Desenrolou-se, então, uma conversa que poderia ser observada como algo de profético. Ou de como a Literatura às vezes pode alcançar horizontes mais vastos do que a Política…
Esse episódio, em meio a tantos outros, trouxe à tona uma época sobrecarregada de estórias, que havia quedado no esquecimento. Até aquela página da Internet nos fazer viajar em torno daquela série de fotos suscetíveis de resgatar fantasmas. Meio século depois, assiste-se ao descalabro rondando o Império americano, a China (apesar dos grandes percalços) assumindo uma importância crescente no Mundo, enquanto a Europa vai perdendo, aos poucos, o timbre cultural que durante tanto tempo animou nossa Cultura.