Em torno da cor do silêncio I Everardo Norões
Qual a cor do silêncio?
O bar toma de assalto a calçada.
Àquela hora não há mais passantes.
Ela me olha com olhos pretos, mortiços, como ovelha sendo empurrada para o sacrifício. Os olhos do cordeiro de Abraão e Isaac. De vez em quando, parecem perdidos, como se avistassem um duplo de mim atrás da cadeira. Um bicho estranho ronda-lhe a alma, levando-a ao gesto compulsivo de agarrar mechas de cabelos, arrancando fios num ritual de automutilação.
Ninguém atrás. Apenas nossas sombras projetadas na parede pela luz do poste. Talvez esteja tentando perturbar-me, estratagema de quem busca subjugar o inimigo. Pois toda relação supõe alguma forma estudada de cativar o outro. Depois, submetê-lo.
Insiste:
— Qual a cor do silêncio?
É a pergunta recorrente que me faz, após ter assistido a um filme em que um dos atores, na cena final, faz a mesma indagação à amante. Ponho a mão em concha à orelha, fingindo não perceber. Um ardil para tentar impedir que ela a repita. Aponto o alto-falante do bar, como quem sugere: “Com esse barulho não consigo escutar!”
Percussão e violão acompanham uma voz rançosa naufragando entre gargalhadas e estilhaços de frases.
— Garçom! Garçom!
O rapaz chega. Camisa 10, sobrancelhas feitas, ofegante, equilibra a bandeja de plástico na mão esquerda.
Comando mais uma cerveja.
— Qual o resultado da partida de hoje? — pergunto.
— Tô por fora, doutor!
Sai correndo, toalhinha alaranjada no ombro, estilo massagista de time de subúrbio.
Ela continua a mexer as mãos. Segura de novo um novelo de cabelos. Crina negra de potranca, luzidia. Ao perceber o alvoroço do garçom eu poderia ter respondido:
— A cor do silêncio é ocre. Cor da “iluminação”.
A mesma dos trajes dos monges budistas, os que fazem meditação Zen. A do monge do Vietnã imolando-se, ateando fogo às vestes embebidas de gasolina. Está num documentário. Hoje em dia, tal cena nem comove. Para impressionar talvez fosse preciso que os aparelhos de TV exalassem cheiro. Cheiro da carne humana queimada, naquele instante em que o descaso pela vida é sua própria afirmação. Ou quando o silêncio é mais sugestivo do que o som. A morte tornada tão ordinária quanto o copo de cerveja ou a canção brega do bar.
Nem menciono a palavra “ocre”, a cor do açafrão. Ela não perceberia o significado. Sua idade a torna distante daquele Vietnã do monge sacrificado, de Buda e do general Giap, o gênio militar que comandou a derrota de franceses e americanos.
Por isso, digo:
— O silêncio tem um tom de amarelo queimado. Cor parecida à do tijolo!
— De tijolo??? — Está pensando em quê quando fala “tijolo”?
— Um muro, uma casa! Mais ou menos assim: a cor do lugar de quem está preso entre paredes sem reboco. Lembra lábios fechados, tributo ao silêncio. Pode ter esse tom avermelhado!
Penso em outra coisa. Não digo que imagino o monge ajoelhado, as chamas, o horror domado no rosto da multidão. Bem poderia dizer-lhe que a cor do silêncio sugere um “presunto” deixado em algum subúrbio distante. Aquele tipo de morto banalizado pelos sites da internet, das conversas de Cleanto, um amigo de infância, tira de profissão. De vez em quando ele me conta casos de seus plantões no comissariado. O homem que castrou o vizinho porque fez um buraco no barraco para flagrá-lo em cena íntima com a mulher ou a guria que arrancou a orelha do namorado com uma mordida ou a velhinha com aids e amante do filho do dono do mercadinho. Histórias do gênero que Cleanto conta rindo e finda com o desabafo de sempre:
— O noticiário não informa nem metade do que acontece nessa m..!
Olho para baixo. Tenho ao pé da mesa uma garrafa de cerveja vazia. Imagino-a quebrada, pontas aguçadas. Acesa, como a tocha do pressentimento. Garrafa estilhaçada, mais intimidante do que uma pistola Glock. Sugere uma descarga de energia, cujo efeito paralisa o adversário antes do golpe. É quando o ocre se transforma em encarnado, do mesmo jeito que o grito pode ser submetido a uma transmutação química quando aquele pó alvo e cristalino escorre dentro do nariz dela.
A lâmpada do bar brilha no verde fosco da garrafa.
Quero pagar a conta.
— Garçom!
A pressa. Em certas circunstâncias, o tempo medindo a covardia é maior do que o regulado pelos relógios. Penso nisso, numa desculpa para mim mesmo. Tempo e espaço são curvos. E também é curva a música que atormenta. Mas é preciso que ela não se aperceba do meu medo. Escamoteio-o com uma respiração prolongada, tentando entender o sentido da pergunta que ela faz sobre a “cor do silêncio”.
Então, olho-a e penso:
— É muito pó!
É tarde. A barulheira do bar vai arrefecendo aos poucos, como se houvesse uma conspiração contra aquele ritmo que se alteara cada vez mais enfurecido. Ou como se um ecoar de passos de repente desconsertasse a ordem das esferas.
Três casais saem às pressas. O garçom chega com a conta.
— O bar vai fechar! — informa, olhando para os lados.
— E a cerveja? — pergunto-lhe, fingindo-me de desentendido.
Faz sinal negativo com a cabeça.
Risadas vindas do interior do prédio rimam com sombras que se deslocam no muro de frente. A luz do poste veste a rua com um tom amortecido de luar de tango argentino.
Quase aos gritos, ela insiste:
— Qual a cor do silêncio?
Pela primeira vez, sua fala ecoa diferente. A voz é ríspida, perturba. Ela não tem mais o ar de bicho acuado.
O alto-falante reverbera Reginaldo Rossi. O Garçom, aqui nessa mesa de bar ronda-me a cabeça.
— Está maluca com essa história de “Qual é a cor do silêncio” — penso.
Ela me fita como se não me conhecesse. Em que país, por acaso, deixou guardada a viagem que nunca fez e na qual parece embarcar a cada sonho?
(Três semanas atrás, por volta das dez. Ela também havia reclamado a perturbação que lhe causava a música alta. Gostava daquela, mas apenas se fosse cantada baixinho:
Garçom, aqui nessa mesa de bar
Você já cansou de escutar
Centenas de casos de amor.)
No muro, do outro lado da rua, o cartaz.
Uma foto do psicopata.
O gesto do tiro.
A bandeira do Brasil, desbotada.
E, de repente, o grito:
— Qual a cor do silêncio?