Entrevista I Comunitarismo, Língua e Identidade: Elias J. Torres Feijó sobre o Bem Comum e a Língua Galega
Numa época em que as identidades se encontram em constante mutação e a cultura e a língua se tornam espaços de reflexão profunda, Elias J. Torres Feijó emerge como uma voz que, através da sua experiência, ilumina as complexidades das relações sociais e da construção identitária. Decano da faculdade de Filologia da Universidade de Santiago de Compostela (USC) e galardoado com o III Prémio de Investigação da Cátedra do Caminho, é um homem que, ao falar de si, expõe a riqueza das suas vivências, o constante movimento de um ser que se define nas interações comunitárias e nas lutas por um bem comum. Ao longo desta entrevista, Elias Feijó leva-nos numa viagem de pensamentos sobre o comunitarismo, a inclusão e o poder transformador da coletividade num mundo cada vez mais complexo e marcado pelo individualismo.
Quem é Elias Torres?
É umha pergunta de resposta complexa, isto dito não por retórica mas polas implicações que as suas arestas podem ter e polo grau de elaboração e impostura que chegue a alcançar. Parece-me claro que, se houver interesse em saber como me defino (o que sinceramente duvido para as vossas leitoras), melhor será perguntar às pessoas com que me cruzo, no quotidiano ou no avulso, ao longo do espaço e do tempo. Coordenadas essas que também condicionam a própria resposta.
Feito este prólogo, honestamente, ao pensar na resposta, vem a mim a minha condição de pessoa social: um membro, feliz, dumha família, um membro, feliz, de coletivos sociais (a associação educativa nos tempos livres Altair à frente), um membro, satisfeito, da sua profissão universitária e, em concreto, da Rede Galabra, umha pessoa triste, impotente e veemente na reação ao que considera errado ou injusto, umha pessoa em constante transição (com as suas incoerências, algumhas assumidas, outras suponho que disfarçadas) para tentar pensar e atuar do melhor modo no entendimento do bem comum, com autoanálise das suas vaidades edas suas soberbas, suponho também que nem sempre bem (de)limitadas. E que assume, também, com algumha desejada melancolia, as dores antigas envolvidas em gasas, por lembrar o cantor Silvio Rodríguez. Tentando nortear as suas visões do mundo polo comunitarismo, o inclusivismo, o respeito e o combate ao individualismo. E tentando apreender e integrar valores sociais que exigem deconstruir e censurar formas e atitudes da própria trajetória.
Por que falo de implicações da resposta? Porque as autodefinições, neste caso, conduzem a falar das diversas educações sentimentais e habitus que posicionam as pessoas em determinadas esferas de pensamento e ação. Bastará ler o livro de Joseph Henrich que para galego podemos traduzir como As pessoas mais estranhas do mundo para entender como abordar caraterizações de parentesco e de grupo como dominantes (como é o meu caso), o que poderia ser considerado como umha regressão ou, doutro ângulo (e assim penso), como um sinal de contestação a determinadas tendências dominantes de impostura e individualismo; individualismo, essa pesada e implacável lacra do nosso tempo e do nosso mundo.
Em que achas que o comunitarismo e o inclusivismo pode compensar ou combater o excesso de individualismo? O que é que mais te chama a atenção deles para conseguir mudar algo deste mundo?
São decisivos e acho que não há nem outra conceção nem outro mecanismo tão preciosos como eles. O individualismo está na raiz ou no combustível de muitas classes de desigualdades, ao alimentar-se da indiferença pol@ Outr@ ou das exclusivas conveniências pessoais como mecanismo de tomada de decisões.
A elaboração dumha consciência e dum sentimento de seres sociais (que se alarga a todos os seres vivos) é o que permite crescer no pensamento e na ação, no respeito e apoio mútuos para conseguir melhores circunstâncias vitais, aproveitar de melhor modo os recursos e opções disponíveis para esse bem comum, em que cada pessoa faz parte, real, desse processo de bem-estar, sustentado em valores fortes de compromisso, conhecimento das outras realidades, sentimentos de pertença e de aderência, confiança estrutural, espaços vertebrados polo afeto, o carinho ou, simplesmente, o desejo do bem para as pessoas integrantes das diversas coletividades que se considerarem.
Isso não tem que proceder de atos regrados ou de acordos explícitos (muitas vezes, sim: eu defendo e tento praticar vivamente o associativismo e o voluntariado) mas de formas de funcionar em que as pessoas se sintam à vontade, tenham e ofereçam garantias de respeito e onde os eventuais conflitos passem a ser problemas que reclamam soluções e em que a comunidade se sente impelida a participar e atuar. Um grupo de amig@s, umha equipa de investigação, um conjunto familiar, a praça dum bairro, o grupo de trabalhador@s dumha empresa, pessoas que compartilham circunstâncias vitais, umha associação para promover o respeito polo património constituído como comum, qualquer desses âmbitos ou espaços, tantos outros, numha comunidade associada, podem conformar esse comunitarismo. Há aí que abrir passo ao conhecimento oculto e negado de realidades (do empobrecimento às diversas formas de violência, a neurodiversidade e tantas outras diversidades, modos de pensar e estar…) e a promover portas de entrada, inclusivas, em que, aliás, não haja que cumprir todo um decálogo de ideias e práticas comuns, no entendimento de que o processo educa coletivamente e facilita consensos para o bem individual e comum. Sendo firmes, assertiv@s nas ideias e nas práticas mas evitando qualquer sectarismo ou supremacismo encoberto em que tantas vezes podemos incorrer.
A elaboração dumha consciência e dum sentimento de seres sociais é o que permite crescer no pensamento e na ação, no respeito e apoio mútuos para conseguir melhores circunstâncias vitais
Ora, isso só é possível com sentimento e participação comunitárias. E aí abrem-se aventuras fascinantes, que eu tenho tido a fortuna de ter vivido ao longo da minha existência. Aventuras que se concretizam nas pessoas com que participas em todos esses espaços, nos afetos que as vertebram, na intensidade de crescer e construir juntas, na vigorosa fortaleza de compartilhar umha canção, um momento, umha ideia, que ficam na memória como testemunha, símbolo, projeção e apelo de transcendência pessoal, de elaboração de sentido(s) vitais. A satisfação individual inserida na satisfação coletiva, sempre com um ponto de ceticismo e incompletude.
Mudar o mundo… Pensamento global, ação local… Sem grandiloquências, é bom pensarmos no que podemos fazer, além dumha palavra de ordem, dumha faixa, dum enunciado contundente sobre a realidade que queremos mudar ou, mais simples e eficazmente, sobre o nosso imediato entorno, com quem e como podemos fazê-lo.
Todo um plano de insurreição serena… Achas que essa também seria a melhor maneira de reintegrar com um vínculo operativo o Norte e o Sul do Minho, ou com a Galeguia/Lusofonia toda? Tens trabalhado luminosamente no diagnóstico da situação histórica e atual, mas que caminhos imediatos proporias, para abrir também uma reflexão que nos permita avançar a tod@s?
A insurreição serena, a leal insubmissão, a possibilidade de discrepar sem querer lesar ninguém como objetivo e sim afirmar o que se acha bom para o coletivo.
Para dar umha resposta, que já adianto me parece sumária na sua evidência (sim, rotundamente sim, o associativismo e a relação interassociativa é o melhor instrumento para alicerçar essa Galeguia/Lusofonia social, com a Galiza como componente e parte integral desse sistema), lamentavelmente, vai aqui umha resposta cumprida, desculpe. E apenas me referirei à realidade portuguesa, pondo de parte todo o restante mundo de língua portuguesa.
Convém reconhecer a situação atual, o status quo da nossa realidade coletiva, ad intra e ad extra. Somos Espanha e o espanhol domina a vida pública (e a privada) galega. Tornamo-nos, podemos tornar-nos num país atrativo por causa do clima e polo tipo de oferta turística, mas essa atração gera subalternidade e nela sustenta-se. Também na língua e na cultura.
Na Galiza vivemos um geral desacordo a respeito da língua, convertido em conflito de várias dimensões: espanhol vs. galego (com os seus modos de espelhar vínculos e identidades, em muitos casos), com perda progressiva de usos deste; o galego, seja a vertente de uso que se considerar, caminha para umha marginalidade de uso que se situará em breve, calculo, em 30%; e num uso consciente (reivindicador) de 15% (e falo apenas do uso oral). Assim as cousas, a ideia do galego como língua nacional em curto prazo, entendendo esta como a hegemónica no uso coletivo em todas as dimensões públicas (além das político-administrativas), pode constituir umha miragem e umha distorção ilusórias, que devem abandonar-se para melhor investir as energias se se quiger evitar não investi-las em balde e gerar apenas mais melancolia e desenhar objetivos e modos mais eficazes, práticos, certos e felizes de manutenção do galego.
E, dentro do galego, mais conflitos, entre (sou esquemático) o rural e o urbano e dentro deste último, trespassado de confronto entre o galego popular (cuja invocação por vezes disfarça um sentimento de hostilidade ao galeguismo como extensão identificadora ou identitária) e o galego normativo/televisivo, que é sentido por setores como castelhanizado (no uso oral), aportuguesado (nas formas escritas); entre a orientação da RAG e o ILG dominante e a reintegracionista, esta representada polas normas da AGAL ou, já, da AGLP, com escassa visibilidade além de grupos de certa elite cultural socialmente ativos. Isto num quadro desigual, em que @s reintegracionistas se veem forçad@s a assumir também o seu papel subalterno se desejarem participar na vida pública com algumha mínima projeção, sem esperarem qualquer não já reconhecimento mas concessão (mais bem vist@s como umha anomalia perturbadora, que só por vezes umha pátina galeguista ou noutras algumha má consciência na pessoa recetora impede de rejeitar). Não se esqueça que o reintegracionismo cumpre umha função mui relevante no galeguismo para as suas praticantes: conta como número mas elimina rivais no reduzido e, ao mesmo tempo, concorrido campo cultural, intelectual e ainda do poder; (auto-)marginalização ou subalternidade: umha alternativa não mui atrativa… para as praticantes; para as retóricas (que invocam o reintegracionismo e praticam o isolacionismo), um negócio excelente, mais se se pode adquirir com ele algum capital simbólico e se tem acesso a capital económico que permita comprar aquele e garantir este. Falo e falarei aqui fundamentalmente de elites culturais.
O individualismo está na raiz ou no combustível de muitas formas de desigualdade, alimentando-se da indiferença para com o Outro ou das conveniências pessoais exclusivas como mecanismos de tomada de decisão
O galego, como fórmula coletiva de comunicação social, legitimada e nos usos públicos, na sua perspetiva estandardizadora, foi fundamentalmente construída por artistas e funcionári@s, às vezes na dupla condição: mal assunto para soluções práticas; aquel@s, à procura de reconhecimento singular; est@s, com o salário garantido. Ele, assim, alcançou e alcança, e é instalado em, mais um plano simbólico que efetivo. A questão portuguesa é negligenciada historicamente por falta de conhecimento e recursos mas também porque o que se procura é umha diferenciação identitária, aliada dumha dose variável de popularismo, e não um sistema útil e eficaz que poda servir de veículo comunicacional forte e extenso e, de passagem, resistir à pressão do espanhol para converter-se, com este, num recurso de primeira magnitude para o povo galego; a promoção do galego, assim, é fundamentalmente gerada por um sentido popular e identitário. Por isso, serve como está e não cumpre de modo forte nengumha das funções antes assinaladas. Aquel@ artista trabalha para um futuro difuso coletivo, procurando alicerçar a sua posição individual no presente; @ comerciante trabalharia para garantir um presente individual forte, que geraria um capital futuro coletivo sólido: enfim, há aqui pano para mangas, como dizem do outro lado do rio.
Nesse quadro, o comum d@s galeg@s não precisa do reintegracionismo: basta com o galego RAG no quadro das quatro províncias e o espanhol para tudo o mais: dentro, ele é o legítimo, ao lado do espanhol, segundo os casos; fora, já está o espanhol. A extensão no âmbito lusófono, dirigido polas elites que exercem poder institucional e/ou apresentam recursos económicos e legitimados, virá quando as possibilidades de adquirir capital económico ou simbólico diminuírem na Galiza… Outro cantar mui relevante para o que não há espaço aqui; aí, o reintegracionismo poderá ficar atrapado entre duas lógicas convergentes e complementares dos dous lados: é mais fácil e benéfico para essas partes reconhecerem-se em diversidade linguística e cultural (duas línguas, digamos sumariamente, que lhes permita garantir a sua autonomia e soberania e limitar a d@ outr@), do que reconhecerem-se na mesma, com os problemas até políticos que isso poderia vir a ter; é bem para elas, pior para a comunidade, mas esta não está nem em jogo nem no jogo… exceto que se organize na sociedade civil.
Também para o outro lado do Minho, é mais fácil viver na duplicidade ou triplicidade linguística (galego/português/espanhol, para não entrar agora no uso do inglês), que no da identidade linguística (galego=português). Sobretudo pola persistente incerteza do que é (o) galego (coche, galleta…). Note-se que somos um processo (de recuperação e de proposta não consensual), não um resultado linguístico como as línguas ditas normalizadas.
Repare-se: umha pessoa reintegracionista não mudará (quase) o seu uso quando fale com falantes de português: isso pode gerar, depende, na sua interlocutora a ideia dumha pessoa que tem um domínio deficiente ou não pleno do português estandardizado, e perturbar, por desconhecimento desta e, também, por insuficiência (própria ou, no coletivo, ab origine) daquela sem estar mostrando a cada passo e a cada passagem a chancela que o motiva. Umha pessoa não reintegracionista não tem que apresentar explicações: se houver divergência, aquilo (a forma que for) é galego, não português (quer dizer-se, não está usando a língua como espaço comum); ou, então, usarão o espanhol. Isso, para não aprofundar nos usos à portuguesa de e desde umha perspetiva de não identidade linguística galego-portuguesa: quem assim fizer, passará por simpátic@, ou por competente (se a sua fala for próxima ou igual às formas reconhecidas pola pessoa interlocutora como próprias), com grande ganho no seu capital simbólico (que em nengum caso estará em risco), enquanto aquel@ reintegracionista ficará num plano, no melhor dos casos, de incerteza na sua interlocutora; no pior, como insuficiente utente e, talvez, rondando a insolvência cultural.
[Mas o que justifica a existência do reintegracionismo, ao menos para mim, é um sentido coletivo e de bem-estar para a comunidade galega -e, por extensão, para toda a comunidade utente do português nas suas variantes. Eu, educado primeiramente no espanhol, vivo (sem esquecer a minha posição privilegiada como funcionário) com tensão, raiva e impotência o reintegracionismo polo que sinto (me) é negado ou a mim mesmo nego, mas com a compensação de entender-me parte diminuta dumha proposta boa para a qualidade de vida d@s galeg@s: no seu maior acesso a bens e na garantia da manutenção da sua língua como modo de estar, entender e intervir no mundo; com algumhas cedências, incomparavalmente menores que as da sua castelhanização e com muito acréscimo em relação à perda. E, dum modo fascinantemente paradoxal, para garantirmos esse futuro e salvar o galego de dentro, temos que recorrer (fortuna incomparável, quase exclusiva!) ao galego de fora. Porque, convém não esquecer: não devemos renunciar nem aceitar a separação da comunidade cindida politicamente polas vicissitudes históricas mas ainda sólida no seu cerne cultural nem renunciar ao facto de que essa parte pudo continuar prolongando e mantendo essa cultura e língua de modo mais autónomo do que a nossa, ainda que a nós fosse dado conservar aspetos que podem servir de reintegração também para a outra parte].
O associativismo e a relação interassociativa é o melhor instrumento para alicerçar essa Galeguia/Lusofonia social, com a Galiza como componente e parte integral desse sistema
Regra geral, do outro lado do Minho, o comum não entende a realidade e a eventual causa linguística galegas, perspetivada a Galiza como Espanha sem matiz, bem alicerçada na ignorância de qualquer vínculo com a Galiza desde a escola primária até o uso esmagador do espanhol que recebem dentro da Galiza ou no seu próprio território, por parte d@s galeg@s, muit@s del@s com um sotaque, umha prosódia, um uso linguístico em todos os níveis da língua que soa a espanhol ou, na melhor das hipóteses, a uma pessoa espanhol-utente a querer falar português, em que a cortesia ou a condescendência interlocutora abrem caminho para o uso do espanhol/portunhol. Falamos, claro, de oralidade. O uso escrito fica reservado a mui restritas elites linguísticas; nestas, há quem entende o uso de normas reintegracionistas como fórmula de simpatia para a pessoa lusa sua interlocutora; como assim ou por motivos profissionais ou de prática entendem o uso do standard português.
E, então, se as cousas assim são, Como interlocutar com o outro lado do Minho? Em quais termos? Visto isto, vale a pena o reintegracionismo? Para começar por isto último, em termos pessoais, não vale ou vale a alto preço, se se conseguir ser reconhecid@ como par linguístic@, sempre a custo da marginalidade no próprio espaço social galego e vendo como, em muitas ocasiões, pode ser mais fácil partir do isolacionismo ou de situar-se fora da equação galego/português para conseguir objetivos de reconhecimento. Vale se se entender como proposta eficaz para o futuro e melhoria de vida do povo nos termos antes indicados.
O primeiro que a Galiza deveria fazer é contar a sua própria história ao além-Minho. Um exercício difícil, porque ela mesma desconhece a sua história… Contar quem somos é essencial mas faria falta um consenso que não temos, mesmo no modo de dirigir-nos. A nossa é umha língua que, recuperada em algum pouco léxico, está cada vez e em mais vertentes castelhanizada… Haveria que procurar fórmulas, integradoras (e há-as) para dirigirmo-nos a esse povo, para fazermos entender o que somos e como pode ser entendido e usado esse somos, plural e integradamente.
Em tempos considerei, e ainda hoje considero, que um investimento excelente, que corre paralelo ao crescente relacionamento económico entre os dous lados do rio, será o de fazer umha publicidade, governamental (e, se não, associativista), de quem somos e em que fase estamos dirigida a Portugal nos seus meios de comunicação social. Umha grande campanha que ampare a nossa forma de estar e usar a língua comum, que interpela os portugueses como parte dumha solução eficaz e feliz. Que lhes diga que a língua aqui continua viva e em processo de fortalecer-se e que encontra em Portugal o seu natural prolongamento e parceiro. Isso para mim continua sendo positivo, ao lado dum apoio eficaz a pessoas, empresas e entidades ao abrigo da Lei Paz Andrade, para o uso do galego na interlocução com pessoas português-falantes e a competência de uso no português standard (e cada quem encontrando também formas expressivas comuns fora dessa estandardização). Naturalmente, aceitando a situação atual, a entrada das outras variantes do português terá a maior utilidade nas mesmas aulas de língua e literatura galegas e, entretanto, o seu crescimento na oferta como língua estrangeira. E, claro, o acesso aos meios de comunicação portugueses no próprio território galego. Mais haveria a dizer, claro, mas fique agora a procissão ainda no adro… Convém ir colocando o galego/português num âmbito instrumental e comunicacional, sem perder o seu valor identitário, para generalizá-lo e ser oferecido ao conjunto galego como um bem e um recurso único e benéfico.
E chego por último ao associativismo. Vivo no associativismo desde muito novo e considero-o o instrumento mais fascinante e eficaz para o bem-estar social, como portador e meio de valores, crescimento e aprendizagem individual e coletiva; e, na sua pluralidade de possibilidades e objetos, como sistema fortalecedor da coesão social, da sociedade civil e da qualidade de vida. Vivo nisso, desde cedo colocando, para o caso que nos ocupa, como prioritário o relacionamento e parcerias do outro lado da língua. O associativismo de qualquer âmbito é um canal magnífico para o relacionamento; só polo puro prazer de (re)conhecer-se é bom; reconhecer-se mesmo com os entraves que séculos de história dissociada puderom construir e precisamente para superá-los. Para o caso, esse relacionamento deste lado do Minho deve introduzir a componente galega, mesmo ao lado doutras: o resto virá por acréscimo.
De modo natural e sem necessariamente plano reflexivo programático, muitas entidades galegas (tenho agora em mente agrupações de música e dança tradicionais) encontram em Portugal a sua expansão e relacionamento lógicos; e vice-versa. O festival, o livro, o acampamento; impulsado por umha câmara municipal, um consórcio livreiro, um clube. É questão de orientar a política da entidade e o seu plano a esse contato.
Bem completa a tua visão, além de sugestiva para abrir caminhos… Nesta linha, achas que estas possibilidades que comentas seriam válidas também para outros espaços da Galeguia/Lusofonia (Brasil, PALOP), ou há algo que consideres especificamente interessante para eles?
Galeguia… Esse termo foi proposto por Luiz Ruffato, no quadro dum congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, que tivo lugar em Santiago de Compostela no verão do 2005. Ruffato: umha pessoa sensível, de inteligência analítica, brasileiro. O vocábulo conheceu logo sucesso na Galiza, na medida em que afirmava a parte galega como matriz da língua comum, e deslocava consequentemente o luso, onde não toda a gente se sente à vontade, muitas por umha eventual marca (de lembrança) colonial, outras porque não mostra suficiente diversidade, algumhas também por razões tecnicopolíticas (não falamos luso), sem esquecer as galegas que não se sentem representadas num nome que não as abrange, ao menos à partida [devo dizer que, quanto a mim, tanto faz: prefiro um termo funcional à falta de outro melhor, e penso que pode acabar lexicalizado, perdendo essas conotações (mas) que, de facto existem].
Calculo que houvo algo de epifânico na proposta do Luiz: afinal, não havia essa dependência sociopolítica do luso e uma raiz sem contenciosos colonialistas e sem afãs imperialistas podia ser invocada. Tenho ouvido mais algumas propostas (lembro, agora, uma conversa com o José Eduardo Agualusa, que propunha denominar a nossa língua como “língua geral”, termo antigo também).
Se conto estes pormenores é porque acho que é, mais do que umha necessidade, umha inquietude que quer ser resolvida ou contornada nesses países. E que a presença da Galiza é um contributo extraordinário para reforçar o policentrismo linguístico e cultural em que o intersistema de língua portuguesa pode sustentar-se (e deve fazê-lo para garantir a sua viabilidade e estabilidade). Isto, também para contra-arrestar a tendência centrífuga nesse intersistema, que pretende desfazê-lo pola via de afirmar duas línguas (o português e o brasileiro, a que determinados setores na Galiza poderiam querer somar o galego, o que estava já na ideia de Ramón Piñeiro e que permitiria a legitimação da deriva isolacionista do nosso idioma).
Isso dito, eu acho que todo o contato, toda a relação da Galiza, desde a cultura galega, com qualquer âmbito do intersistema (e Brasil e os países africanos de língua portuguesa deveriam estar no nosso alvo de diplomacia cultural) é bom. E que essa língua comum deve ser, para culturas e línguas nacionais, além do português, que compartilham o mesmo espaço social, um aliado do seu conhecimento e desenvolvimento.
Ora: qual Galiza? E aqui é onde, nesse espelho que é o restante mundo de língua portuguesa, batemos com as nossas realidades, as nossas insuficiências e as nossas contradições. Mas, se olharmos a imagem com mais atenção e a vontade de quem se adereça para ir ao encontro de alguém, aí vemos a oportunidade de podermos continuar sendo nós, com a compreensão e o acolhimento de quem ao nosso encontro vem ou pode vir: o encontro, único, em que não temos que deixar de sermos nós, a quem podemos oferecer bons enfeites próprios e, ao mesmo tempo, podemos beneficiar de bons adereços que nos podem ser oferecidos.
Voltamos, pois, à Galiza. Quais seriam, basicamente, esses enfeites próprios, do teu ponto de vista?
Nós, @s galeg@s, temos umha cultura, um modo de estar e atuar no mundo, que inclui muitos elementos que fazem parte do coletivo no seu conjunto, que são reconhecíveis pola comunidade galega como próprios, alguns comuns a outras comunidades, outros diferenciais: da festa à gastronomia, da relação com o território à conceção da família. Naturalmente, não são elementos imutáveis; polo contrário, estão submetidos, esses e todos, a permanente mudança e adaptação às necessidades e desejos das pessoas em inter-relação e dialética e permanentes. E nunca atuando de maneira nem unilateral nem unidimensional mas em interação com outros. Um deles é a língua, o galego. Umha língua que porta essa visão do mundo e que gera sentimentos e afetos muitas vezes comuns e coletivos, com utentes muitas vezes em conflito com utentes doutras línguas, particularmente, é óbvio, do espanhol, com muitas vezes também os seus sentimentos e afetos comuns.
Mas centro-me agora na questão do galego. É esse repertório que denominamos galego que queremos conservar e promover. Nele há muitas variantes e muitas formas, algumhas de entrada recente que mostram a sua raiz castelhana (como esta palavra); outras forjadas ao longo de séculos. Para que ela funcione como bem e ferramenta comuns na atualidade (com administração, escola, meios de comunicação etc) é preciso fixar umha norma que funcione de modo comum. E, como sabemos, aí, nessa fixação, se estribou e estriba um conflito notável sobre, fundamentalmente, o caminho a seguir. Tampouco é cousa de desenvolver aqui a análise desse conflito mas de responder à pergunta colocada do meu ponto de vista: eu entendo a língua como um continuum galego-português historicamente considerada, que se espalhou de modo diverso polo mundo. Nesse continuum, nós ficamos com a pior fortuna, ao não termos o galego como língua de estado, o que conduziu o galego a umha deterioração e a castelhanização evidentes (por invasão ou por lacuna), mas cujo alcance é objeto de disputa (é o que noutros lados denominei défices projetivos: cada quem, e, em geral, cada grupo agencial, detetou umhas carências e não outras e assim determinou o seu projeto e a sua ação). Mas tivemos a fortuna de que a outra parte sim foi língua de estado. “Deus, que nos castigou tanto, deu-nos esta glória”, sentenciou Murguia em 1891).
Consequentemente, eu não aceito que se nos negue umha parte fundamental da nossa riqueza, que está além-Minho e que, apesar dos séculos de separação político-administrativa e da espanholização da Galiza (e, mesmo, em parte e noutra direção, de Portugal), continua vigorante como bem comum. Essa não aceitação concretiza-se em entender que ela é fonte de reforço e segurança do galego, em todos os seus níveis (de fixação e uso), e que ela nos abre muitas possibilidades de bem-estar ao ser língua espalhada polo mundo, o galego que nesse mundo é conhecido como português.
Precisamos, pois, focar a nossa língua em função das variantes que triunfarom no mundo sem (atenção!) renunciar a todo o nosso património linguístico, desde que este seja genuinamente galego e, no possível, se adeque às formas triunfantes do português no mundo; e, ao mesmo tempo, adotar as medidas necessárias para que ele funcione com possibilidades no intersistema de língua portuguesa. Isso precisa dumha necessária adaptação ortográfica, morfológica, sintática, léxicosemântica.., mantendo as formas que nos pareçam genuínas e que não impeçam o fluxo e o intercâmbio. A AGLP já realizou um inventário de formas lexicais galegas para esse mundo comum (O Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa). Nisto tudo há perdas e ganhos, claro. E há processos, dilatados. E há diferentes formas de olhar ou renunciar aos nossos enfeites. Quem ler esta entrevista, verá que, na minha proposta, não renuncio à nossa forma de terceira pessoa de plural do pretérito perfeito (bem útil) nem a marcação explícita da nasalidade velar sonora (com formas como umha) mas que adoto o -ão (de que não gosto nada). São apenas dous exemplos de representação gráfica de sons que podem estender-se a qualquer outra dimensão da língua.
No âmbito reintegracionista, levo tempo insistindo na conveniência de realizarmos um inventário genuíno de todas essas dimensões e das formas a que não renunciamos dentro da prática comum da língua e fazer dele umha proposta unificada, no possível. Para mim, no seu dia e antes do Acordo Ortográfico, a Norma histórica da AGAL era a melhor proposta para o galego. Hoje, já ficou atrás pola força das dinâmicas sociais da língua, dentro mas também fora da Galiza; é o que eu penso.
A promoção do galego deve ser gerada por um sentido popular e identitário, mas também como um recurso útil e eficaz de comunicação para o povo galego, sem nunca perder o seu valor simbólico
Ora, por último, convém estimar o muito com que nós podemos contribuir para essa comunidade linguística, até na depuração de castelhanismos das outras variantes, na lembrança e uso de formas preteridas que forom comuns (e de que há ecos ou presenças no norte de Portugal, por caso, mas não só; também no Brasil ou na África), ou na introdução de visões culturais bem úteis e plurais. Baste pensar na parémia, nas frases, sentenças, provérbios; ou nas cantigas populares. Temos muito que comunicar também. Somos o contributo, belo, da avó que não tem contenciosos com ninguém, que virá reforçar um necessário policentrismo que enfrente o uniformismo e, também, as tendências centrífugas no intersistema. Umha avó atual, que tem modernidade, posição estratégica e impulso enriquecedor. E que na língua comum veicula produção artística, cultural, científica, técnica, conhecimento, que só será útil e gostosa para esse intersistema.
Que importância lhe dás às artes (literatura, música) neste diálogo intersistémico? Que autoras/es são mais relevantes para ti?
A Galiza, no seu conjunto mais abrangente possível, e, mais em concreto, aquelas suas dimensões interessadas nesse relacionamento intersistémico como fazendo parte do intersistema, lealmente, precisa dar-se a conhecer nesse mundo porque é desconhecida, no geral. Lealmente significa, no caso, desde dentro, aceitando os materiais e instrumentos do intersistema como próprios, a começar polo uso linguístico, reconhecível, com as variantes que forem, dentro do que internacionalmente se conhece como língua portuguesa. Ficou dito. Aquela grande campanha a que me referia, deverá recorrer aos meios de maior alcance através da nossa produção cultural: cinema, música, teatro, audiovisuais em geral; literatura também, e outras artes; só que costumam ter menor (ainda que não menos importante audiência). Impulsar essas presenças, como, e dentro de, umha estratégia coordenada deveria ser prioritário e as entidades que se sentirem envolvidas, acordarem umha agenda de impulso e intervenção, investindo nelas recursos e procurando-os, de administrações, organizações, sociedade civil. Os recursos sempre são escassos e convém afunilar bem o que se quer fazer, priorizar, pactar, procurar alianças, agentes. Nomes? Sou pudoroso relativamente a dar nomes mas, só por atender à produção de música e teatro e polo que tenho ouvido e visto dos outros lados do Minho, A Pedreira, Guadi Galego, Uxia apresentam potencialidades e realidades extraordinárias para isso, na nossa dimensão musical (e aproveito aqui para reivindicar um músico de impacto no outro lado, historicamente: Emilio Cao); e gentes mais novas como Mondra, também! No âmbito teatral, a sistemática presença do Quico Cadaval em âmbitos lusófonos de todo o tipo é marca indiscutível de sucesso.
Um outro mundo é ainda, se calhar, possível. Que esperança baseada em feitos concretos temos para poder aproximar-nos para ele, além do que já tens mencionado antes?
Talvez os maus tempos aprofundem no pessimismo ou aquelas coordenadas espaciotemporais constituam conjunturas difíceis mas tenho poucos motivos para os feitos concretos que me são demandados. E, no entanto, é umha obrigação cívica, social, de alicerce antropológico, que nos obriga como espécie e índole moral, a pensar em termos esperançosos. Há algum tempo escrevim brevemente sobre esperança e desesperança; e o que ali escrevim continua sendo para mim pertinente e atual https://vivacerzeda.com/perder-a-esperanca/ e https://vivacerzeda.com/ganhar-a-esperanca/ com um portal https://vivacerzeda.com/concurso-de-remedios/, que lhe veu na continuação.
A esperança, para mim, está em duas direções: onde as virmos, convém acompanhá-las: a das pessoas que realizam ações que as transcendem; que não são para si ou apenas para o seu próprio benefício e que tentam melhorar, honesta e comprometidamente, a vida doutros seres. E a das pessoas que o fazem sem esperar recompensa material, que entregam parte do seu tempo ao bem comum sem retribuição ou sem outra retribuição que a sua satisfação na dimensão que for; pessoas voluntárias. E, essas direções, num âmbito de convergência: a do coletivo, a das pessoas que se unem e compartilham para fazerem essas cousas, porque aí estão os bons valores, no próprio processo, na própria ação, até com independência do resultado.
Para além dos grandes e interessantes movimentos sociais, penso em pessoas de ação local, que não impõem os seus critérios e modos de entender o mundo mas que lutam e labutam por que o que as rodeia (física, moral, civicamente) seja melhor. Locais que podem estender-se a outros locais e unirem-se num interlocal sempre comunitário. Sigam essas pessoas! Unam-se a elas, gostaria de proclamar. Sejam as ideias ou crenças que as animam as que forem (já vou farto de ouvir criticar instituições religiosas por sê-lo quando estas são o único abrigo e amparo de muitas pessoas, enquanto o pessoal criticante não passa de abarreirar-se atrás dumha faixa de legenda épica…! Pessoas aquelas que se unem a outras com independência ou até apesar das crenças e ideias destas, apesar sobretudo das não ações delas, exceto o puro dar nas vistas).
Ahh, esse coletivo de pessoas generosas unidas por umha causa de melhoria, de assistência, de bem-estar…! Heroínas deste tempo de indigência em que a superioridade se coloca na proclama e no efeito.
O associativismo é fulcral. O entendimento e a procura de encontro com quem trabalha para o coletivo e a vida social; quem faz do compromisso um sinal de identidade, muitas vezes sem pretendê-lo; outras orgulhosamente pretendendo-o. Falta carinho e compreensão; e compaixão; sobeja soberba, individualismo, mesmo naquelas pessoas que julgam atuar desde pressupostos progressivos e coletivos, que só o são, quanto muito, na aparência, e que em muitos casos são reacionários (reacionários, não conservadores, sendo este outro assunto complexo, em que há elementos conservadores nutriciais); sobeja-nos a hipocrisia dos mil abraços e esfregamento de costas se não se seguirem da atenção às causas dos seres desvalidos, empobrecidos, maltratados.