O Doomscrolling sob a Perspectiva do Realismo Capitalista de Mark Fisher: A Desumanização Digital
“O capitalismo não é uma maneira de organizar a produção, mas uma forma de organizar o desejo.” — Gilles Deleuze
Nos últimos tempos, dei por mim a cair insidiosamente na armadilha do doomscrolling. Talvez já tenha acontecido a muitos de nós algo semelhante: o dia chega ao fim, deitamos-nos e, com o telemóvel na mão, somos atraídos para uma espiral interminável de notícias sombrias, polémicas e tragédias. Antes que nos apercebamos, já se passaram horas, e o nosso estado de espírito deteriorou-se, vítima de uma compulsão que, embora claramente desgastante, se revela difícil de quebrar. Sentimo-nos exaustos, ansiosos, talvez até desesperados, enredados num ciclo que nos aliena e nos rouba a paz de espírito.
Este fenómeno, que tem vindo a ganhar destaque, conhecido como doomscrolling, descreve o hábito cada vez mais comum de passar longos períodos a consumir conteúdos perturbadores e notícias negativas nas redes sociais. Movido pelo design vicioso das plataformas digitais, este comportamento tem impactos profundamente negativos na saúde mental e no funcionamento do nosso cérebro: o doomscrolling está associado a uma diminuição da capacidade de concentração, à perda de memória a curto prazo e a distúrbios emocionais, afetando especialmente a área mesolímbica, responsável pelas sensações de prazer e pela resposta a recompensas e adições.
Os nossos cérebros, naturalmente programados para a busca incessante de prazer, tornam-se reféns deste ambiente digital contemporâneo. Mark Fisher, no seu aclamado Realismo Capitalista¹, define a “hedonia depressiva” como uma condição em que nos tornamos incapazes de nos envolver em qualquer atividade que não proporcione uma gratificação imediata, fornecida pelo consumo incessante de imagens e informações. Esta reflexão de Fisher sobre o capitalismo digital revela um ciclo vicioso onde a busca pelo prazer efémero se transforma numa espiral de problemas de saúde mental. Fisher, ao longo da sua carreira como teórico cultural, sempre esteve atento às manifestações do capitalismo na vida quotidiana, com obras como Ghosts of My Life e The Weird and the Eerie a explorarem a relação entre a cultura popular, a depressão e a sensação de um futuro roubado. Em Realismo Capitalista, o seu trabalho mais influente, Fisher argumenta que o capitalismo se infiltrou em todos os aspectos da vida, tornando difícil imaginar alternativas, propondo que, tal como o doomscrolling, muitos dos nossos comportamentos contemporâneos são moldados e exacerbados por este sistema.
Os nossos cérebros, naturalmente programados para a busca incessante de prazer, tornam-se reféns deste ambiente digital contemporâneo
Para cartografar a experiência do “realismo capitalista”, Fisher argumenta que é necessária a óptica de um novo Kafka, capaz de mapear o o poder cibernético. O que torna a escrita de Kafka instigante, segundo Fisher, é a sua capacidade de descrever o mundo sem a “solenidade do patetismo existencialista”. Em Kafka, o mundo não é marcado pela grandiloquência metafísica, mas por um covil sórdido e estreito, onde o afecto dominante não é a alienação heróica, mas a vergonha rasteira. Esta perspectiva kafkiana, adaptada ao contexto digital, complementa a crítica de Fisher ao capitalismo digital, sublinhando a necessidade de compreender a dimensão psicológica e social deste sistema, que nos enreda numa teia de desconforto e dependências aparentemente inexoráveis.
Segundo Fisher, os problemas de saúde mental resultantes do consumo constante de conteúdos digitais devem ser politizados. A tecnologia, em si mesma, não é a culpada, mas sim o design capitalista que visa a criação de dependências. O “scroll infinito”, uma característica omnipresente nas redes sociais, é um exemplo claro desse design insidioso. Se o consumo incessante de conteúdo digital já era problemático, a situação agrava-se com a proliferação de conteúdos gerados por inteligência artificial, cuidadosamente moldados pelos algoritmos para se alinharem com os nossos interesses e preferências, prendendo-nos ainda mais neste ciclo de consumo sem fim. Esta análise ressoa com as reflexões de Byung-Chul Han sobre a “Sociedade da transparência”², onde o controle subtil é exercido através da superexposição e da manipulação da informação. Adicionalmente, a escritora e ensaísta Remedios Zafra explora também no seu livro “El Entusiasmo”³ como o trabalho criativo e intelectual é explorado pelo capitalismo digital, criando uma sensação de esgotamento e alienação, o que se alinha com a visão de Fisher sobre a forma como o sistema capitalista manipula a nossa atenção e emoções, convertendo-as em recursos exauríveis.
Outro aspecto inquietante referido por Mark Fisher é a adição ao apocalipse mediático. Notícias sensacionalistas, fake news e deepfakes desempenham um papel crucial nesta dinâmica: em vez de procurarmos informação com um espírito crítico, acabamos por reforçar os nossos próprios preconceitos cognitivos. A velocidade vertiginosa com que consumimos conteúdos digitais impede-nos de verificar e contrastar adequadamente as informações, levando-nos a aceitar como verdade quase tudo o que aparece nos nossos ecrãs. Quanto mais apocalíptico for o conteúdo, mais nos viciamos nele, resultando num estado de depressão e numa busca incessante por um prazer fugaz. Este ciclo vicioso reflete a teoria da “Sociedade líquida”4 de Zygmunt Bauman: para Bauman, vivemos numa era em que tudo é fluido, instável e em constante mudança, onde os sólidos e os permanentes se desvanecem em prol do efémero e do transitório. A “sociedade líquida” caracteriza-se pela fragilidade das instituições e dos valores, e pela crescente incerteza que permeia a nossa vida quotidiana. O doomscrolling, com a sua incessante oferta de notícias apocalípticas e conteúdos sensacionalistas, alimenta essa liquidez emocional, exacerbando a nossa sensação de insegurança e instabilidade.
No contexto da sociedade líquida, o fluxo contínuo de informações disruptivas e alarmantes não apenas nos mantém presos num estado de alerta constante, mas também enfraquece a nossa capacidade de discernimento crítico. A sobrecarga informativa cria uma sensação de caos que nos desorienta e desestabiliza. A busca incessante por estímulos digitais apocalípticos torna-se uma forma de escapismo, uma tentativa desesperada de encontrar significado e controle em um mundo cada vez mais fluido e incerto.
A crítica de Mark Fisher ao ‘realismo capitalista’ aponta para a necessidade de uma consciência mais crítica e de uma resistência às forças que exploram a nossa atenção e emoções
Saltando de uma rede social para outra, perpetuamente conectados, partilhamos conteúdos incessantemente, alimentando o ciclo do doomscrolling e mantendo-nos presos num fluxo contínuo de informações e estímulos. A solução para este dilema reside na aprendizagem de uma navegação mais crítica e consciente na internet. Os impactos negativos no nosso cérebro podem ser mitigados através do desenvolvimento de aplicações que não incentivem o doomscrolling e que promovam o pensamento crítico, tanto online quanto offline.
Apesar das facilidades proporcionadas pela tecnologia no acesso a um vasto repositório de conhecimento, o tecno e cibercapitalismo focam-se em lucrar com a nossa dependência do consumo desenfreado de imagens e conteúdos. É essencial que estejamos conscientes destes mecanismos manipuladores e desenvolvamos estratégias para resistir ao doomscrolling. Promover a literacia digital e a capacidade de análise crítica são passos fundamentais para quebrar este ciclo vicioso e recuperar o controlo sobre o nosso tempo e saúde mental. A crítica de Mark Fisher ao “realismo capitalista” sublinha a necessidade de uma consciência mais crítica e de uma resistência às forças que exploram a nossa atenção e emoções. Será, portanto, crucial identificar estes perigos e adotar uma postura mais consciente no uso da tecnologia. Ao fazermos isso, podemos contrariar os efeitos nocivos deste hábito e estabelecer uma relação mais saudável com o mundo digital. A análise de Mark Fisher ilumina este cenário, oferecendo-nos uma compreensão profunda das dinâmicas envolvidas e incitando-nos a resistir às forças que manipulam a nossa atenção e emoções.