escrever o corpo da palavra vascular
fazer a reza de um corpo que carrega outro corpo
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um corpo que se derramou em si
um composto de tremor, furo e ferro
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um corpo que vive através de seu rastro, de sua mancha
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uma imagem em chamas a correr pela altura de uma filha
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como cuidar do teu corpo já tocado pelo incontornável?
como proteger teu nome já tomado pelo fogo?
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eu temo o Aberto de teu corpo
Enxerto do livro com as patas no grande Hematoma (Editora Urutau, 2023)
com minha cabeça, irrigar minha imagem. fazê-la úmida, penetrável, porosa.
escutar a linguagem de minha febre. redesenhar o semblante de minha pobreza. uma arquitetura
dobrada em sua própria água.
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uma mulher que possui um homem em desagregação nos cabelos
uma mulher que não concebeu a palavra fronteira diante desse homem
uma mulher que nunca soube forjar a própria borda
uma mulher condenada a reencenar as mesmas imagens, os mesmos gestos
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escrevo debruçada. escrevo com a parte mais cansada de meu corpo
debruçada talvez seja a posição que mais me abocanha, que mais me diz
uma mulher suficientemente arqueada
uma mulher côncava e que possui as costas em batalha
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relacionar-se com aquilo que não encontra representação na língua. conviver com seu indizível, com sua espécie de dignidade oculta. escrever o ilegível. escrever o que a própria escrita não alcança. pensar deserticamente. pensar com uma língua que foi abolida. abandonar o próprio corpo enquanto se está nele.
como fazer nascer uma outra língua na mesma língua? a língua anterior como um depósito de rasuras, despojos, arqueamentos.
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a respiração de um animal a levantar teu nome
um pulmão a crescer por dentro da tua voz
a posição mamífera do teu hálito
como dizer a fisionomia do Desamparo?
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Raquel Gaio nasceu e reside na cidade do Rio de Janeiro. Licenciada em Letras pela UFRJ, é poeta, artista-cuidadora e pesquisadora independente. Escreveu os livros de poesia “com as patas no grande Hematoma” (Urutau, 2023),“manchar a memória do fogo” (Urutau, 2019) e “das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã” (Editora Patuá, 2018).