A morte o esperava como um ventre.
Carlos Nejar
Desce apressado o último lance da ladeira que liga a favela ao asfalto, tênue a fronteira entre dois mundos.
Lá embaixo a agitação feérica em tudo difere da camaradagem do morro, onde a comunidade se (re)conhece na solidária demanda de cada dia.
O dorso à mostra decalcado de tatuagens, uma caveira nas costas, a estrela de David no peito, versículo dos Provérbios na panturrilha esquerda, Sandra esculpida no ventre e o rosto de Che no calcanhar direito. Apenas um short, suado da caminhada sob o calor implacável, a epiderme expondo-se como um outdoor de mensagens de textos e traços que se misturam num convívio simbiótico de expressões religiosas e políticas. O marxismo e a bíblia lado a lado, o insondável por testemunha.
O guri continua seu passo, numa das mãos uma sacola vazia, o cabelo de um louro artificial recebendo os raios de um sol escaldante, o trânsito ali impedindo-o de vencer o espaço que o separa da outra ponta, onde a avenida é um boulevard de ofertas, um pout-pourri de gente a caminho do trabalho ou de casa, outros em busca de alguma coisa, vai-e-vem de passos antagônicos, no entretempo dos que-fazeres e olhos que se cruzam e não se veem.
Uma senhora de óculos com lentes fundo-de-garrafa, entre balbucios inaudíveis, divide com ele a atenção no fluxo divergente de automóveis, mas recua depois de tentar em vão ziguezaguear entre o escorrer da centopeia metálica naquele meio-dia repleto de velocidade e urgências. Vai-não-vai, passos indecisos em meio ao trânsito que se retroalimenta numa fluidez descomunal. Os dois ali, estáticos e inermes, diante da força bruta do movimento que parece nunca ter fim.
Ergue-se na ponta dos pés e reconhece na calçada oposta a figura de Wesley, o parceiro das quebradas, a quem grita pelo apelido: “Baiano, ô Baiano!”, expande a voz num ricochete inócuo e ainda mais uma vez insiste no apelo, mas o “parça” segue sem ouvir o chamado, certamente sua audição impugnada pelo burburinho e estridência dos sons na hora do rush. E sua figura se esfuma no emarnhado de vozes, sons e imagense na metrópole apressurada. Anônimo e resoluto, como areia na ampulheta, continua na apreensiva tentativa de seguir em direção ao seu destino.
Nem bem o semáforo alternou-se para o verde, a mulher já a meio da via só escutou o barulho surdo do projétil que o derrotaria naquela sexta-feira sem outra novidade qualquer, senão o calvário de que são feitas certas vidas.
Para não tumultuar o trânsito, uns poucos que flagraram o acontecimento antes de a Polícia chegar, retiraram o corpo (silenciado, pálido, já desligado da feroz mecânca daquele dia), a sacola de plástico já havia sumido com o aparato de ventos naquele corredor de veículos e motos, um chinelo ainda guarnecia um dos pés, curiosos olhavam de soslaio, entre a indiferença e o temor, um bêbado chegou com uma vela e colocou rente à cabeça do cadáver, que não trazia celular nem documentos, somente num dos bolsos uma bagana pela metade que já se encharcava com o fio vermelho a escorrer vultoso do lado esquerdo inundando-lhe a epiderme com uma severa e sinistra pichação.
**
Ronaldo Cagiano, nascido em Cataguases (MG), formou-se em Direito, viveu em Brasília e São Paulo e está radicado em Portugal. Estreou com ”Palavra engajada” (poesia, 1989) e dentre as obras publicadas, destacam-se: ”Dezembro indigesto” (contos – Prêmio Brasília de Produção Literária 2001), ”Dicionário de pequenas solidões” (contos, Ed. Língua Geral, Rio, 2006), “Eles não moram mais aqui” (Contos, Ed. Patuá, SP, 2015 – Prêmio Jabuti 2016), ”O mundo sem explicação” (Poesia, Ed. Coisas de Ler, Lisboa, 2019), “Cartografia do abismo” (Ed. Laranja Original, SP, 2020) , “Arsenal de vertigens” (Poesia, Ed. Húmus, Famalicão, 2022) e “Horizonte de espantos” (Contos, Ed. Urutau, Lisboa, 2023).
Fotografia do autor por Ozias Filho.