Maio, maduro Maio, quem te pintou?
Paris, 1971. No seu álbum Cantigas de Maio, Zeca Afonso proclama os encantos da primavera em tempos de ditadura. Este álbum cantou a utopia da liberdade e gritou a força de resistência face às negras consequências do golpe de estado de 28 de Maio de 1926. Poderíamos dizer que a História se encarregou do resto. Mas não. Creio que há algo de muito mais forte neste álbum. Trata-se de um gesto criativo visionário, futurista, não apenas no que conseguiu vislumbrar de futuro, mas naquilo que pode, ele mesmo, criar para esse futuro. Com todas as músicas e colaborações nele presentes, este álbum impulsionou a Revolução dos Cravos, três anos depois. Alterou os factos. Mudou o rumo da História. Foi um marco intrinsecamente temporal.
Lisboa, 2024. Após um novo golpe de estado, desta vez a 7 de Novembro de 2023 e bastante mais subtil, celebram-se os 50 anos de Abril com 50 deputados fascistas no parlamento. Ficaríamos talvez mais descansados se estes 50 deputados fossem apenas um episódio português. Mas, infelizmente, estamos perante um fenómeno sistémico que se propaga por todo o mundo como uma erva daninha que tenta destruir tudo à sua volta. Por isso, nunca como hoje, é tão necessário regressar ao álbum do Zeca e fazer ressoar as cantigas da liberdade.
Maio, maduro Maio, quem te pintou? é uma exposição comemorativa do 25 de Abril com a participação dos seis artistas residentes da Oficina Impossível – Carolina Vasconcelos Lapa, David Reis Pinto, Gemma Zoe Urban, Inês Briz, Saionara Dreyer e Sophia Hamilton Cruz – e do artista convidado Carlos Farinha. Nesta exposição, o elemento principal é o esplendor das cores da primavera de Maio, da esperança, da euforia por vir. Já dizia Deleuze que, face aos poderes contaminados e contaminantes, a alegria como potência de vida é a grande resistência.
Como artista convidado, Carlos Farinha dá o mote da exposição ao relembrar a dimensão avassaladora do primeiro 1º de Maio em Lisboa. Milhares de pessoas saíram à rua, com a certeza de que finalmente estavam em liberdade, após os dias complicados do fim de Abril. Carlos Farinha tem vindo a desenvolver uma série de trabalhos em torno do tema da liberdade, conjugando a homenagem à revolução e o alerta para os perigos que a liberdade conquistada pelo 25 de Abril enfrenta hoje e que cada vez batem mais forte às nossas portas. É essa duplicidade que está presente nesta exposição. Assim, num pequeno prelúdio, a exposição começa com uma espécie de close-up realista da perdição do presente. Ao 1 de Maio de 1974 de Carlos Farinha, juntam-se, assim, três peças para uma análise crítica do presente: Precipício de David Reis Pinto, uma escultura que pretende pensar o abismo da maioria da população face ao estado do mundo de hoje, Madrugada e Uma de Inês Briz, duas pinturas que fazem ressoar o desamparo da multidão e das singularidades perdidas.
A exposição prossegue numa nota bastante mais alegre, de grande abertura à cor e à crença no mundo – essa tarefa tão difícil, mas ao mesmo tempo tão urgente! Segue-se um conjunto de obras em que Maio, esse mês mensageiro das alegrias do mundo, passa a ser o ponto central em toda a sua exuberância. David Reis Pinto lança a pujança de Maio num díptico impressionista e impressionante. A partir da profusão de cores e da força da textura da tinta, percebemos o gesto de liberdade que aconteceu a cada pincelada nesta pintura de grande intensidade. Numa linha totalmente diferente, geométrica, Saionara Dreyer joga com a cor a partir da ideia de volume e de linhas rectas. Mas a sua rectidão geométrica contrasta com o uso da madeira tosca, o que produz uma complexidade inesperada. Sophia Hamilton Cruz traz uma nota calma, fluída, quase etérea, da Primavera. Usando técnicas também elas etéreas, como, por exemplo, a tinta de álcool, Sophia conduz-nos numa viagem celestial. Gemma Zoe Urban experimenta um Maio carinhoso e naïf, numa provocação de experiências felizes por um ambiente tropical. Seguindo a tradição angolana dos panos e dos contadores de histórias, Carolina Vasconcelos Lapa explora a pintura no tecido e na palavra. Aqui, perante o embondeiro e os seus frutos, Maio cruza-se com o vitalismo da natureza quente de África. Last but not least, a fechar o percurso expositivo, Inês Briz convoca as forças cósmicas de Maio, numa vertigem que se joga entre a gravidade de linhas verticais e a turbulência do movimento centrífugo.
Esta é uma exposição a várias vozes. O colectivo de artistas da Oficina Impossível preza-se por ser um colectivo heterogéneo, de várias nacionalidades, formações e experiência artística. Na dobra dessa heterogeneidade, Maio é pensado, nesta exposição, também ele, sob várias técnicas, materiais e estilos. E na afirmação da diferença, dizemos em uníssono, a uma só voz: estamos todos muito felizes por celebrar Abril em Maio!
A Oficina Impossível
A Oficina Impossível abriu as suas portas a 24 de Janeiro de 2020, com a exposição coletiva “12+1. A primeira vez” e com duas sessões de conversas com os artistas e a curadora. O sucesso foi extraordinário e tudo estava encaminhado para a realização de inúmeras exposições e eventos com o mesmo impacto. Mas devido à pandemia, fomos forçados a suspender a restante programação. Fechámos portas ao público, mas mantivemos abertos os nossos ateliers e assegurámos todas as condições de trabalho em segurança para os artistas residentes que, desta forma, puderam continuar a trabalhar. Foi então que reformulámos o nosso conceito: mais do que uma galeria, um espaço para as artes. Ou seja, mais do que um espaço para exposição, a Oficina Impossível é um espaço para a criação, para a produção artística e para o pensamento crítico, com momentos de debates e conversas.
Como damos mais importância ao processo criativo dos artistas residentes, temos apostado na organização de várias exposições colectivas em formato pop-up, durante 3 dias consecutivos, onde salientamos a nossa participação na Abertura de Ateliers Abertos organizada pelo Castelo d’If e pela Sociedade Nacional de Belas Artes. Este formato tem sempre grande sucesso, uma vez que permite ao público e colecionadores visitarem e conhecerem mais pessoalmente os artistas e os seus ateliers. Neste momento, temos a decorrer até ao final de Junho, a exposição Maio, maduro Maio, quem te pintou? Esta exposição conta com a participação dos seis artistas residentes da Oficina Impossível – Carolina Vasconcelos Lapa, David Reis Pinto, Gemma Zoe Urban, Inês Briz, Saionara Dreyer e Sophia Hamilton Cruz – e do artista convidado Carlos Farinha. A exposição organiza-se em dois núcleos: um pequeno preâmbulo crítico do presente e uma grande abertura para a cor, onde a pintura celebra o esplendor da primavera de Maio e da esperança por vir.